quarta-feira, maio 11

Diálogo a uma só voz sobre viver cada dia como se fosse o primeiro

- Sabe, a Mónica estava mesmo decidida a viver os seus dias como se fossem o último, sabe?
Dizia-o, com a sua voz rouca e lacrimejante, um senhor alto, com as costas curvas pelo esforço de olhar a realidade cá em baixo com os seus castanhos olhos miúdos. Não falava para ninguém, apenas para toda a gente. Vinha todo vestido de negro, que ostentava como única flor o seu sorriso nostálgico, saudoso, desses que acontece quando nos perdemos nas fabulosas memórias de um passado que nunca existiu.

E tinha sido aquele o seu último dia da sua vida terrena. Encontraram-na havia duas noites, deitada no chão, com os braços estendidos sob o chão frio de azulejos.

Mónica acordou, logo de manhã, sentiu-se vazia. De uma prateleira baixa do armário tirou uma caixa vermelha e abriu-a sobre a cama. Tirou as cartas de tarôt e virou-as uma
(carta da morte)
a uma,
(carta da morte)
virou-as todas com o mesmo gesto e sempre saía a mesma figura,
carta da morte.
Era aquele o seu último dia. Sabia-o. E decidiu vivê-lo como se fosse o último.
Tinha tudo escrupolsamente planeado desde os cinco anos: sempre soubera que curso ia tirar, com quem ia casar e em que idade, quando compraria a casa... E socorrera-se sempre dos métodos de adivinhação para evitar os imprevistos que surgissem. Acabara de escrever a autobiografia de toda a sua vida aos dezoito anos, e estava convicta de que não teria que mudar nem uma linha.
Mas não planeara isto: um dia, sentia-se vazia, um dia, uma, duas, tantas cartas de tarôt!, um dia, carta da morte, um dia morreria só numa casa gelada e quase sem janelas, só um quarto, uma sala, uma cozinha, pouco mais.
Não se ouvia na rua o som de uma alma que fosse. Ninguém a percorria com o rosto fechado, dentro de um kispo azul, de um sobretudo verde ou de uma parka vermelha, olhando o céu cinzento e revolto. Apenas o metódico rufar da chufa caíndo sobre o telhado dos prédios, sobre o capôt dos automóveis mal estacionados, sobre o alcatrão da estrada.
Era aquele o seu último dia. Sabia-o. E decidiu vivê-lo como se fosse o último.
"Mónica teve uma vida preenchida. Deu a volta ao mundo a bordo de um veleiro. Tornou-se uma actriz famosa. Frequentou os locais mais respeitados. Ficou milionária com apenas trinta e dois anos." Era o que se lia na obra que contava a sua vida. Mas não! A verdade aparecia-lhe agora assim, horrenda: morreu só, trancada num quarto. Sabia agora que tinha que preencher rapidamente a sua vida com o conteúdo das trezentas e setenta e seis páginas daquele livro; acelerar a vivência de mais cinquenta e sete anos e resumi-la a um dia só.
Pensou no que ia fazer naquele dia todo o dia; e esse pensamento consumiu-a. Viu chegar a lua com angústia e desnorte. Nesse dia a lua iluminava bem toda a rua, e penetrava magníficamente na cozinha pela única janela de todo o apartamento. Com os pés descalços, e envergando apenas a camisa de noite que nunca tinha chegado a despir, Mónica entrou na cozinha, sentindo o chão gelado sob os seus pés, e decidiu tomar um comprimido para dormir. Esqueceu de ler a posologia, porém, e tomou duzentos e cinquenta e três comprimidos.
Foi aquele o seu último dia da sua vida terrena. Encontraram-na naquela noite, deitada no chão, com os braços estendidos sob o chão frio de azulejos.

1 palavras urbanas:

  • Fez-me lembrar Sophia de Mello Breyner... profundo e sentido. (André no seu melhor.... deve ter sido das últimas aulas de Filosofia, ou não!)

    Beatriz

    Por: Anonymous Anónimo, às 5:52 da tarde  

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