quinta-feira, novembro 3

Coisas Simples 2

Eram oito e trinta e dois da manhã quando um homem chegou à central de autocarros. Vestia uma gabardina de um verde esmaecido. A gabardina estava seca. A marca da sola dos seus sapatos aparecia em relevo na terra húmida. Choveu ontem à noite, pensou. A água acumulava-se em poças de água dispersas pelo largo espaço de alcatrão. Era óbvio que tinha chovido ontem à noite. Mas a ele não lhe importava se a conclusão era óbvia.

Antes de entrar no veículo olhou para a direita. Inspirou o ar fresco matinal. Sentia-se nervoso. Mas aquele momento era mais um entre todos os momentos dos últimos treze anos. Sentou-se no lugar de condutor. Abraçou com as duas mãos o largo volante. Depois pôs o autocarro a trabalhar. Olhou pelo espelho retrovisor. Com a mão direita pôs a alavanca das mudanças em marcha atrás. Manipulava a alavanca com gestos mecânicos. Meteu a primeira. O condutor tinha quase a certeza que podia fazer o percurso de olhos vendados. Fazia rodar o volante por entre as mãos sem pensar se virava à esquerda ou à direita.

A primeira paragem. As portas abriram-se com um som de alívio. As pessoas que esperavam na paragem entraram. O condutor gostava de ver entrar as pessoas. Não era como se olhasse cada pessoa nos olhos. Não era como se lhes decorasse as rugas na testa ou os contornos dos lábios ou a forma do nariz. Cada pessoa é em si própria uma pessoa. Muitas pessoas é, no seu todo, outra pessoa. Ou talvez seja uma palavra qualquer. Apenas uma palavra qualquer dita por uma boca qualquer para ser escutada por um ouvido qualquer. Ou para se perder num vazio qualquer. O condutor não pensava nisso. O condutor apenas gostava de ver entrar as pessoas. Um condutor deve ter pensamentos concretos. Esperar que todos os passageiros entrem. Fechar as portas. Arrancar.

A segunda paragem. O condutor pressionou o botão. As portas abriram-se com um suspiro profundo. O condutor gostava de ver entrar as pessoas. Mas fazia-o com um olhar melancólico. Ele olhava mais além. Num ponto indefinido. Quando voltou a fechar as portas pensou Está a chover. Accionou os limpa pára-brisas.

A terceira paragem. As portas abriram-se com um som taciturno. O condutor olhou para a sua direita. Atrás das pessoas que entravam, um homem. As pálpebras do homem cerraram-se em silêncio. Depois o seu corpo caiu sobre si mesmo. No meio da calçada. O condutor procurou o telemóvel. Ligou o cento e doze. Depois olhou os passageiros pelo espelho. Depois olhou novamente o homem caído no chão. Era a primeira vez em treze anos que acontecia algo assim. É a primeira vez em treze anos que me acontece algo assim. O homem caído parecia ter uns setenta anos. Os cabelos eram completamente brancos. Os seus óculos largos de haste castanha e lentes rectangulares tinham voado trezentos sessenta e seis centímetros adiante. As unhas das mãos eram curtas demais. As mãos estavam cravadas de rugas e veias. Vestia uma camisa com linhas de tons pastel intersectando-se em quadrados.

O condutor começou a aperceber-se de um rumor de protesto. Atrás de si. Sentiu todo o corpo aquecer. As suas faces ruboresceram. Alguém disse, numa voz rancorosa,
– Importa-se de pôr o autocarro a andar?,
os outros protestavam num múrmurio. O condutor esperou, com as faces ruborescidas. Nove minutos e trinta e seis segundos. O gutural som da sirene da ambulância chegava urgente aos ouvidos do condutor. Nove minutos e quarenta e sete segundos. A luz azul da sirene apareceu no espelho retrovisor. Depois arrancou.

Sabia que um seu colega estaria a conduzir outro autocarro brevemente para aquela mesma paragem. Sabia que na quarta paragem outras pessoas o esperavam, ansiosas e agitadas. Não sabia porque não tinha arrancado com o autocarro. Parecia-lhe óbvio. Tão óbvio quanto impossível de explicar. O óbvio é uma coisa complicada. Penso nisso mais tarde.

6 palavras urbanas:

  • As tuas coisas simples, continuam a encantar-me. Só espero que continues.
    Estarei sempre atenta.

    Por: Anonymous Anónimo, às 10:21 da tarde  

  • Deixa-me dizer que os "básicos" (para não lhes chamar outra coisa) que deixaram os dois últimos "comentários" são, por estranho que pareça, um fantástico reconhecimento do VALOR literário do teu "Coisas Simples 2" que, pessoalmente, me encantou.
    A Vida é mesmo assim: Uns conduzem os autocarros, seleccionam os caminhos, evitam os buracos, sorriem aos passageiros - porque estão vivos e gostam de o mostrar - outros há que se limitam a apanhar boleia ou a serem conduzidos - porque... talvez Deus saiba!...
    Não sei o que aconteceu no final da estória, mas... gostei da tua luz (azul) ao fundo do túnel!...
    - Não páres! A Vida espera-te!

    Por: Anonymous Anónimo, às 1:51 da tarde  

  • Correcção ao meu comentário anterior (porque não nos deixam corrigir os erros?): onde se lê "dois últimos comentários" deve ler-se (claro) "dois primeiros comentários"!.

    Por: Anonymous Anónimo, às 2:14 da tarde  

  • Se não gostasse já muito de ti, passaria a gostar só por escreveres!

    Por: Anonymous Anónimo, às 2:16 da tarde  

  • para dizer a verdade, só comecei a gostar de ti quando vim ao teu blog. cometi um grande erro e apredi uma grande lição, contigo. aprendi a gostar das pessoas pelo que são. desculpa não te ter dado valor em tempo útil.
    e pensar que pudíamos ter sido amigos....
    espero que quando um dia, me perdoares, aconteça de forma diferente.
    beijocas, keep going

    Por: Anonymous Anónimo, às 8:35 da tarde  

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    Por: Blogger taddeohackney, às 9:01 da tarde  

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