quinta-feira, novembro 10

Coisas Simples 3

Era uma pessoa de hábitos. Adormecia sempre virado para a direita, mas acordava sempre para a esquerda. Colocava sempre os dois pés nos chinelos beges ao mesmo tempo. Sempre tivera chinelos beges. Rodava a maçaneta da porta do quarto com uma mão. Com a outra afagava o cão de pêlo negro e luzidio que sempre o esperava do outro lado. O cão esperava sempre do outro lado. Também naquele dia acordou. Para o lado esquerdo, como sempre. Calçou ambos os chinelos beges, rodou a maçaneta da porta do quarto com uma mão. Mas não havia nenhum cão de pêlo negro e luzidio esperando-o do outro lado.
Se aquele homem alguma vez antes tivesse sonhado, teria julgado que aquilo era um sonho. Mas aquilo não era um sonho. O cão jazia, negro e prostrado a meio do chão do vestíbulo. O vestíbulo era muito, muito comprido. O vestíbulo costumava ser exíguo. Mas naquele dia era muito muito comprido.
As suas mãos tremeram, como só a frustração pode fazer tremer umas mãos. Deitou-se no chão do corredor. O chão era frio e impassível. O chão não fala. Quando uma pessoa olha para o chão não vê nuvens, nem sóis, nem Primaveras. Duas lágrimas, transparentes como todas as lágrimas sinceras, brotaram-lhe dos dois olhos. Assustou-se, porque nunca antes tinha chorado. Ou talvez tivesse chorado antes. Mas se tinha chorado não se lembrava, e por isso era como se nunca tivesse chorado.
quatro anos que aquele cão o esperava fora do quarto. Ele não se lembrava de mais nenhuma data importante, excepto a de um dia de há quatro anos atrás. Era um fim de tarde. Chovia nesse fim de tarde. O cão espreguiçava-se em frente a uma porta de um prédio. O cäo pensava Esta porta de prédio é igual a todas as portas de prédios. Ou talvez não pensasse. Mas aquela porta de prédio era diferente de todas as portas de prédio. O homem chegou e olhou o cão. O pêlo negro e luzidio estava húmido e pingava. O cão ergueu a cabeça e olhou o homem olhos nos olhos. O homem nunca tomara decisões repentinas, muito menos em fins de tarde com chuva. Mas aquele não era um fim de tarde como todos os fins de tarde. Por isso o homem entrou no prédio, sacudiu o guarda-chuva preto na rua, olhou o cão olhos nos olhos e convidou-lhe a entrar. O cão entrou e sacudiu-se e encheu a entrada do prédio de gotas que eram transparentes como são transparentes as lágrimas sinceras.
Ele era um daqueles homens a quem nunca apeteceu perguntar porquê. Não era que ele não conhecesse a palavra. Simplesmente evitava-a quando podia. Ele preferia não perguntar porquê e continuar a chorar sem razão. Porque preferia assim nem ele sabe nem se incomodou a perguntar.
A história do cão era diferente. Os cães não choram. Os cães ganem, latem, mostram nos olhos a sua dor. Mas os cães não choram. Este nunca teria chorado, porque sempre viveu numa espera quieta por algo que não sabia bem o que era. Os habitantes da rua de baixo sabiam quem ele era. Costumava espreguiçar-se em frente ao café. Por vezes deitava-se à sombra de uma das mesas da esplanada. Outras vezes preferia outros lugares. Gostava muito de se esticar na melancolia morna da calçada da rua aquecida por um sol de Verão.
O café fechava às nove. O café só servia almoços. O café era pequeno. No fim do dia o dono do café costumava trazer uns quantos ossos e deixava-os para o cão de pelo negro e luzídio. O cão aproveitava roía bem os ossos. Por um lado aproveitava bem o que de comestível nos ossos. Por outro dava-lhe prazer cravar ali os dentes. Fazia-o como um jogo. Procurava algo que sabia não encontrar e encontrava satisfação nisso. Muitas vezes deixava os ossos do lado e vinha estender-se na calçada ou sob as mesas da esplanada. Ou noutros lugares, que às vezes preferia.
Um dia o café não abriu. Fechou às nove, como sempre, mas o dono não apareceu no dia seguinte. Nem no dia a seguir a esse. Nem no dia a seguir. Pelo menos que o cão visse. Na porta um papel branco. Escrito com letras maiúsculas saídas de uma caneta de feltro azul, Para trespasse.
Nem no dia a seguir. E o cão decidiu tentar a sorte na rua acima. Na rua acima não havia nenhum café. Por isso o cão decidiu esperar por aquilo que não sabia o que era em frente a uma porta de entrada de um prédio. O cão não gostava disso porque pensava As portas de entrada dos prédios são todas iguais. Ou talvez não pensasse. Mas aquela não era.
O homem não tinha mais lágrimas para chorar. Quando choramos há sempre um momento em que paramos. E em que a realidade nos aparece. E parece-nos tão dura que muitas pessoas a questionam. Não esta. Esta nunca a questionava. Ele levantou-se. Depois afagou o pêlo do cão.

O cão estava morto. O homem não sabia o que se faz com um cão morto. O homem nunca se lembrara de pensar que o cão podia morrer. O homem preferia não o fazer.
Ele pensou Tenho que ir trabalhar. Já passava meia hora da hora a que ele costumava saír de casa. Essa era a oitava hora, e agora eram oito e meia. Ele estava surpreendido por descobrir o quão pouco importante isso era. Decidiu não tomar o pequeno almoço. Nem tomar um duche. Nem fazer a barba, como todas as manhãs. Vestiu-se apenas e depois saiu e esperou o autocarro.
O homem entrou no autocarro. Olhou o condutor. O condutor tinha o olhar fixo nos passageiros que entravam. Mas o condutor não os olhava. Olhava mais além, como um ponto indefenido. O homem escolheu um lugar ao acaso. A única condicionante era que ficasse junto de uma janela pela qual visse os cães spreguiçarem-se na rua. Os prédios pareciam mover-se, o mundo parecia andar para trás. Mas o homem sabia que era o autocarro que se movia e não tinha muita esperança de estar errado. O autocarro parou novamente.
Pela janela o homem viu um cão rafeiro perder-se na esquina da rua. Viu uma lata de refrigerante vazia. Um saco de plástico esvoaçante e amarelo. A parede clara mas suja de um prédio. Uma paragem de autocarro. E depois um corpo humano estendido no chão. O homem amava o cão que desaparecera atrás de uma esquina. Mas o homem não amava o homem que estava estendido no chão. O homem esperou que o condutor fizesse a chamada. Deve ter ligado para a ambulância, pensou. Depois esperou mais um pouco. O autocarro estava parado há alguns minuto. Disse,
– Importa-se de pôr o autocarro a andar?
Alguns passageiros concordavam que não havia razão para delongas e não queriam chegar atrasados. Outros não concordavam. Porque o homem podia ter algo de grave. Ou porque tinham curiosidade. Ao homem que olhava cães pela janela do autocarro isso não importava. Ele só queria que alguém ouvisse a raiva, a impotência na sua voz enquanto dizia
– Importa-se de pôr o autocarro a andar?
Havia quem pensasse que ele era egoísta. Era verdade. As pessoas que amam com aquela urgência de quem pode amar para sempre mas quer amar tudo naquele momento... As pessoas que amam são muitas vezes muíto egoístas.

14 palavras urbanas:

  • Olá!!
    Passei por aqui para ler as tuas "coisas simples"....gostei!!
    Voltarei com mais calma!!
    **

    Por: Blogger Madeira Inside, às 11:53 da manhã  

  • OLá!!
    Passei por aqui para agradecer o teu comentario e para dizer que voltarei com mais calma!!
    As coisas simples podem ser as mais belas!!
    *

    Por: Blogger Madeira Inside, às 11:58 da manhã  

  • Olá, conheci o teu blog ao acaso..mas foi um feliz acaso, não pareces ter aidade que tens, escreves mt bem..darias um óptimo romancista, que tal tentar?
    Quanto a tua sugestao de cabeceira - adorei, ja li ha mts anos e ainda assim provoca me um arrepio intelectual relembrar me do Ensaio.
    beijos,
    Vampiria

    Por: Blogger Vampiria, às 12:11 da tarde  

  • Caro André
    Bom texto, espelhando uma grande maturidade...
    Um abraço
    Daniel

    Por: Blogger Daniel Aladiah, às 12:12 da tarde  

  • Alo
    pensava que podia comentar e aparecia logo, por isso tava d enovo a comentar, mas ja vi que nao aparecera logo, tens de aprovar, né? bem, ok! fico a aguardar.
    beijos

    Por: Blogger Vampiria, às 12:12 da tarde  

  • não sei se eu me sentiria bem...

    Por: Anonymous Anónimo, às 1:30 da tarde  

  • Este coisas simples é bem mais complexo.
    Gostei mas não tanto como os 2 coisas simples anteriores.
    Talvez um pouco longo e fico perdida no emaranhado.

    Por: Anonymous Anónimo, às 5:13 da tarde  

  • Grata pela visita. Gostei destas coisas simples que não são tão simples quanto isso...Voltarei.

    Por: Blogger Micas, às 2:39 da tarde  

  • Olá webdreamer

    Agradeço a tua visita - as palvras. Espero que voltes sempre!

    Vou agora conhecer o teu "espaço" prometo que voltarei.

    Mas já li o "Coisas Simples" a intenção do teu texto está perfeita. Parabéns.

    Beijinhos

    Por: Blogger Fragmentos Betty Martins, às 11:49 da tarde  

  • Ola tudo bem?obrigada p teres visitado o meu mundo, espero q voltes mais vezes. gostei mt deste teu cantinho tb,voltarei.beijinho grande.

    Por: Anonymous Anónimo, às 4:16 da tarde  

  • Não apenas muito bonito este texto. Adorei.
    Sim, talvez sejam muito egoístas. Ou talvez nao seja amor.

    Por: Blogger Gabriel, às 4:40 da tarde  

  • ola webdreamer.
    obrigado pela tua visita. gostei do teu comentario e gostei aqui do teu canto. reparei na tua idade. escreves muito bem.

    abraço da leonoreta

    Por: Blogger Leonor, às 9:11 da tarde  

  • gstei de te receber na minha cabana e vim ler-te

    adorei

    e prometo voltar

    beijinhos

    lena

    Por: Blogger lena, às 9:47 da tarde  

  • OLA PASSEI PELO SEU BLOG E GOSTEI MUITO, CONTINUE ESCREVENDO ASSIM TRA UM BRLO FUTURO COMO ROMANCISTA, BEIJOS.

    Por: Anonymous Anónimo, às 7:43 da tarde  

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