Coisas Simples 4
A janela estava aberta há muito tempo. Talvez ninguém tenha reparado ainda. Mas ontem choveu. Quatro dedos tocam as gotas de chuva no parapeito de madeira da janela. Os dedos eram brancos. Os dedos eram frágeis. E longos como os de um pianista. Ou como uma pessoa que tem os dedos longos. E os estica para alcançar a lua. Mas nunca a alcança. A lua sempre foi demasiado distante. Aqueles que já esticaram os seus braços com esse intento sabem do que estou a falar. Estava lua cheia e era uma noite de Novembro. Mas mesmo as luas cheias são distantes.
Os dedos eram brancos e eram de Maria. Maria pensava em como Todas as noites de Novembro são iguais. Pensava-o como se não pensasse. Porque não lhe importava se por acaso todas as noites de Novembro fossem realmente iguais. Nem tão pouco lhe importava que provavelmente o não fossem.
A casa era grande. Ou talvez não fosse grande, mas era muito maior que Maria. A casa estava vazia. As casas grandes e vazias são apavorantes. As divisões parecem prolongar-se sem fim, num silêncio escuro e sem nome. Parece-se demasiado com o futuro, pensava Maria. A Maria não incomodava o escuro. A Maria não incomodavam os olhos e a visão. Incomodavam-lhe os sons, os gemidos, os estertores agitados de uma casa que dormitava sobre um passado inquieto.
Maria fechou a janela. Estava frio lá fora. A brisa fere como as verdades nuas. Agora a janela estava fechada. Recomeçou a chover. Maria encosta a sua mão à parede. Maria sentia a parede. Depois a mão perde-se no ar. No nada. Não, nada não. Era uma entrada. Maria entrou na sala. O chão era frio e Maria tinha os pés descalços. Toda a sua espinha se retorceu num arrepio. Maria seguiu em frente, pé ante pé. Maria sabia onde estava o banco. Estava dezoito passos a seguir à entrada da sala. Maria tocou o banco com a mão, girou sobre ele, sentou-se. Aconhegou-se no banco negro. Esticou os dedos. Os dedos eram brancos. Os dedos eram frágeis.
E longos como os de um pianista. As teclas são brancas para as oito notas principais. As teclas são negras para os meios tons entre as notas. Excepto entre o mi e o fá, que têm apenas meio tom entre si. Maria não sabe porquê. Maria sabe as teclas de memória. As brancas e as negras. E as músicas. As de Mozart, de Bach, de Schubert, e as de outros menos famosos que estes.
Mas quando Maria tocava ela não se preocupava com nada deste mundo. E preocupava-se com muito pouca coisa do outro. Quando Maria tocava piano apenas tocava piano. As notas fluiam numa cadência tão óbvia que parecia ser a única coisa a bater certo no mundo. Nada no mundo é mais real do que isto, pensava Maria.
Os pés moviam-se nos pedais. Os dedos nas teclas. A pressão era controlada minuciosamente. E as mãos deslizavam para a esquerda e para a direita no teclado. Percutiam-se as cordas. Piano, piano, meioforte, pianíssimo. Para lá da melodia era o abismo. O ruído ou o silêncio. Ou o que quer que fosse o abismo. O mundo era Maria, um banco preto de altura regulável, um longo piano de cauda, negro e luzidio.
Aquele piano de cauda era a única extravagância de Maria. A bem dizer era o único objecto que Maria realmente alguma vez sentira necessidade. Ele era estritamente necessário. Talvez não fosse uma extravagância. Ela sabia que se podia perder no piano para toda a eternidade. Ficar ali, jejuando de comida e de bebida. Ficar ali sem dormir nem sonhar mais do que aquele momento eternamente presente de cordas sucessivamente presas e soltas que vibravam.
O único senão era que todas as músicas tinham um fim. As músicas de Maria geralmente entrelaçavam-se entre si numa só. Mas esta música também tinha um fim. Talvez como todas as coisas. Ou talvez não fosse um fim mas um novo príncipio. Talvez como todas as coisas.
Os dedos eram brancos e eram de Maria. Maria pensava em como Todas as noites de Novembro são iguais. Pensava-o como se não pensasse. Porque não lhe importava se por acaso todas as noites de Novembro fossem realmente iguais. Nem tão pouco lhe importava que provavelmente o não fossem.
A casa era grande. Ou talvez não fosse grande, mas era muito maior que Maria. A casa estava vazia. As casas grandes e vazias são apavorantes. As divisões parecem prolongar-se sem fim, num silêncio escuro e sem nome. Parece-se demasiado com o futuro, pensava Maria. A Maria não incomodava o escuro. A Maria não incomodavam os olhos e a visão. Incomodavam-lhe os sons, os gemidos, os estertores agitados de uma casa que dormitava sobre um passado inquieto.
Maria fechou a janela. Estava frio lá fora. A brisa fere como as verdades nuas. Agora a janela estava fechada. Recomeçou a chover. Maria encosta a sua mão à parede. Maria sentia a parede. Depois a mão perde-se no ar. No nada. Não, nada não. Era uma entrada. Maria entrou na sala. O chão era frio e Maria tinha os pés descalços. Toda a sua espinha se retorceu num arrepio. Maria seguiu em frente, pé ante pé. Maria sabia onde estava o banco. Estava dezoito passos a seguir à entrada da sala. Maria tocou o banco com a mão, girou sobre ele, sentou-se. Aconhegou-se no banco negro. Esticou os dedos. Os dedos eram brancos. Os dedos eram frágeis.
E longos como os de um pianista. As teclas são brancas para as oito notas principais. As teclas são negras para os meios tons entre as notas. Excepto entre o mi e o fá, que têm apenas meio tom entre si. Maria não sabe porquê. Maria sabe as teclas de memória. As brancas e as negras. E as músicas. As de Mozart, de Bach, de Schubert, e as de outros menos famosos que estes.
Mas quando Maria tocava ela não se preocupava com nada deste mundo. E preocupava-se com muito pouca coisa do outro. Quando Maria tocava piano apenas tocava piano. As notas fluiam numa cadência tão óbvia que parecia ser a única coisa a bater certo no mundo. Nada no mundo é mais real do que isto, pensava Maria.
Os pés moviam-se nos pedais. Os dedos nas teclas. A pressão era controlada minuciosamente. E as mãos deslizavam para a esquerda e para a direita no teclado. Percutiam-se as cordas. Piano, piano, meioforte, pianíssimo. Para lá da melodia era o abismo. O ruído ou o silêncio. Ou o que quer que fosse o abismo. O mundo era Maria, um banco preto de altura regulável, um longo piano de cauda, negro e luzidio.
Aquele piano de cauda era a única extravagância de Maria. A bem dizer era o único objecto que Maria realmente alguma vez sentira necessidade. Ele era estritamente necessário. Talvez não fosse uma extravagância. Ela sabia que se podia perder no piano para toda a eternidade. Ficar ali, jejuando de comida e de bebida. Ficar ali sem dormir nem sonhar mais do que aquele momento eternamente presente de cordas sucessivamente presas e soltas que vibravam.
O único senão era que todas as músicas tinham um fim. As músicas de Maria geralmente entrelaçavam-se entre si numa só. Mas esta música também tinha um fim. Talvez como todas as coisas. Ou talvez não fosse um fim mas um novo príncipio. Talvez como todas as coisas.
8 palavras urbanas:
Caro Webdreamer?
Obrigado pelos comentários.
Belas histórias por aqui... voltarei.
Um abraço
Daniel
Por: Daniel Aladiah, Ã s 12:52 da manhã
Tudo tem um fim, para que seja possivel o renascer...
Por: Micas, Ã s 9:30 da tarde
Olá!!!
Concordo com a Micas!!
E como é bom o renascer!!!
Belas histórias tens tu aqui...belas palavras urbanas!!
Voltarei
***
Por: Madeira Inside, Ã s 10:23 da tarde
ola web.
acerca do teu comentario no meu blog: gostei. gosto quando as pessoas questionam as coisas.
acerca do teu texto: bom. o talvez a nortear a historia coloca a duvida permanente do autor.
gostei tambem
abraço da leonoreta
Por: Leonor, Ã s 7:19 da tarde
Gostei muito.
Muito mais do que do coisas simples 3.
Este está delicioso, enternecedor e tem um fim sem fim.
Por: Anónimo, Ã s 9:53 da tarde
Muito bem escrito.
Nada é eterno. Eterno é o momento, enquanto dura!
Por: mfc, Ã s 7:13 da tarde
É a primeira vez q aqui venho e deparo-me com belas histórias. Adorei.
Obrigada pela tua visita.
Bjs e bom fim de semana
Por: Anónimo, Ã s 3:55 da tarde
Tu surpreendes-me a cada novo texto.
Até agora, dizia-se: "Não há duas sem três!".
A partir de agora, teremos de passar a dizer "Não poderia haver três sem quatro" estórias de 'Coisas Simples'.
O texto está divinal. Nele "imaginamos" que a Maria não vê! Nele "ouvem-se" as melodias que a Maria dedilha ao piano, enquanto a chuva batuca na janelas.
E, egoisticamente - como "aqueles que amam" - exigimos mais, que
"Não haja quatro sem cinco", e que
"Não haja cinco sem seis", e que...
...bom, tu é que sabes, mas a verdade (já reparaste?) é que todos prometem voltar!
Por: Anónimo, Ã s 8:06 da tarde
Enviar um comentário
<< Página principal