sexta-feira, novembro 25

O Caso

Ele fez da boca um sorriso que não era um sorriso. Fez da boca um esgar sádico e prepotente. Era verdade que palavras como sádico e prepotente não constavam do seu dicionário, mas isso nunca lhe impedira de ser sádico e prepotente. O seu dicionário era, de resto escasso em vocábulos. A sua biblioteca resumia-se a uns escassos livros de capa dura, ornamentando uma prateleira. Um de Albert Camus, outro de Dostoievsky e ainda um Guia de Restaurantes de Mil Novecentos e Noventa e Sete. Nenhum deles lido, à excepção do último, do Guia, que me ocorre agora ter tido uso em algumas ocasiões. O que se passou a seguir é história sabida. O homem puxou dos pulmões o ar; o oxigénio, o dióxido de carbono, o azoto fizeram vibrar as cordas vocais retesadas; as partículas atmosféricas vibraram, formando o que parece que se chama ondas sonoras; e um ouvido que era alheio ao homem de poucas letras vibrou também, em sintonia.

Na sala não havia a luz filtrada por persianas, nem a cadeira de couro, nem a mesa de madeira maciça, nem dois sapatos em cima dela, nem nenhum dos factores que contribuem para que nos apercebamos, num filme, que estamos perante um escritório de detectives. Eu tomava conta do caso. Não é confidencial. Também não é notícia de jornal. Talvez tenha sido abafada por instâncias superiores. Ou talvez já não seja notícia para ninguém. Ou talvez seja tabú.
O crime é mais de tortura do que de assassínio. Vem-se arrastando de há tempos a esta parte. De há largos tempos a esta parte. Há quem diga, à boca pequena e de escárnio, que a vítima nasceu para ser assim martirizada até à morte. A vítima, embora de baixa estatura, era larga em recursos. Sempre em metamorfose permanente. Era usual que a vítima se deitasse sobre a palma de umas quantas mãos que a seguravam e a olhavam atentamente. Os corpos que as mãos possuíam tinham por vezes as costas recostadas em cadeiras de esplanada, outras vezes em confortáveis sofás. Alguns desses corpos deitavam-se sobre colchões de mola. Nessas ocasiões podia suceder que, passado umas horas, as mãos pousassem a vítima numa mesa de cabeceira e apagassem do candeeiro a luz.

Vulgarmente o caso é conhecido por Assassínio da Língua Portuguesa. As provas abundam. Infelizmente os suspeitos também e as penitenciárias não têm vaga para tanta gente. E mesmo que tivessem tem-se verificado existir um vazio legislativo no que respeita a esta matéria. Não sei se o irmão galego desta Língua anda melhor e mais feliz que ela, mas, falando a verdade, o caso não me diz respeito.

A verdade é que, apesar de tantas vezes ter sido anunciado o óbito da Língua, esta parece renascer das cinzas. Como se criasse vida da morte. E ainda enche as livrarias. Ou as bibliotecas, para quem se queixa que o papel impresso anda caro e de que a vida não está fácil. E, em lugar de falecer, agonizada, tem-se dito que evolui. Apesar de se ter perdido o pê agá para o éfe a Língua parece ter resistido incólume. Ainda hoje vagueia por aí. Já não na ponta da pena de um Luís Vaz de Camões mas talvez no teclado do computador pessoal de José Saramago ou José Luis Peixoto.

Pedem-me que trate do caso. Estou agora a pensar se o caso precisa de tratamento. Ou se a Língua se limita a desdobrar para satisfazer todas as necessidades. E que nunca se observará o consumar do Assassínio, mesmo que a própria vítima apareça estropiada em público, por ignorância ou falha, voluntárias ou não. Mesmo que entrem palavras estrangeiras pela fronteira, clandestina. E mesmo que tardemos mais em torná-las nossa propriedade – utilizando-a com uma ortografia e sonoridade nossas – do que elas em nos invadir. E mais do que pensar assim, tenho nisso grande esperança, porque em sendo a nossa Língua tomada por legiões lexicais que lhe são estranhas, ou em sofrendo homícidio por negligência perde Fernando Pessoa a pátria. O que, por ser um dos poetas que a poesia tem de melhor, ou antes, por uma outra razão muítissimo mais válida, que é a dele ser um poeta, seria, evidentemente, de lamentar.

5 palavras urbanas:

  • Muito original.Ideia muito interessante.
    Gostei, principalmente dos últimos parágrafos.

    Por: Anonymous Anónimo, às 6:46 da tarde  

  • Lá que "o caso" dá que pensar, lá isso dá!
    E, pensando, já é uma forma de o começar a resolver - a "o caso".
    Depois, se juntarmos a palavra à ideia, e começarmos a tomar umas notas (soltas, claro!, qu'elas não gostam de 'tar presas), a "coisa" começa a tomar forma...
    E, vai não vai, temos a estória pronta e "o caso" resolvido.
    Ou não?! Bom, o melhor é dar-mos-lhe tempo. Que o Tempo, dizem, tudo resolve; e, portanto, também resolverá o teu "o caso".
    Até lá, não te preocupes: mas não deixes de criar mais "casos". É qu'eu não os resolvo, mas... gosto de os ler!
    Portanto, já volto!...

    Por: Anonymous Anónimo, às 7:48 da tarde  

  • Achei piada ao que dizes da Língua: "Ainda hoje vagueia por aí". E a graça está no "ainda". O importante é que vá vagueando, já que parar é morrer! E que ela precisa mesmo de tratamento é bem verdade, depois de todos os atropelos e desastres de que é vítima. E não só dos que nos invadiram, mas também dos que por cá andam há muito tempo...

    Por: Anonymous Anónimo, às 5:40 da tarde  

  • Mais um "caso" por resolver?? :)

    Por: Anonymous Anónimo, às 9:43 da manhã  

  • interessente o que escreves

    beijinhos e volto

    lena

    Por: Blogger lena, às 9:57 da tarde  

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