Coisas Simples 7
Era noite e estava frio lá fora. Não haviam nuvens no céu. Se não fossem estas luzes, que ladeiam a rua de ambos os lados, que estão nos faróis dos automóveis que vão e dos que chegam e dos que continuam a vaguear sem destino, e também as que iluminam os placares publicitários, se não fossem essas luzes o céu estaria estrelado. Talvez a história fosse outra, pensou um homem de calças de ganga, e camisola negra, de algodão. O cabelo curto e os olhos eram também negros. Eram olhos sem estrelas, como o céu sobre a cidade. Tinha umas salientes maçãs do rosto, uma face magra e lívida, como se sugada por forças ínvisiveis. A barba estava por fazer. Nos lábios, duas linhas ténues que eram como se não existissem, um cigarro extinguia-se.
O homem fechou os olhos e depois expirou o fumo e depois abriu os olhos e viu o prédio. Parou de chover. Era agora, não valia a pena esperar mais. Quando, em noites como esta, se encontrava completamente sóbrio, sentia sempre receio de qualquer coisa que não sabia bem o que era. E olhava bem, e certificava-se várias vezes que estava completamente só. E às vezes quase desejava não estar só. O que era um erro, obviamente. Pensou nisso e arrumou a questão. O olhar duro preso ao prédio do outro lado da rua.
Havia um vento frio que às vezes soprava com força e abanava as copas das árvores. Na mão direita o homem tinha uma mala negra. Uma mala que podia conter qualquer coisa. Abriu-a com um simples movimento coordenado das suas duas mãos, como se já a tivesse abrido muitas vezes. A primeira coisa que tirou foi um par de luvas negras.
Sentiu a adrenalina crescer e sorriu. Gostava daquilo. Tinha completo domínio do movimento do seu corpo, do movimento dos seus dedos magros calçando as luvas negras, envolvendo a pega da mala negra. Nestes momentos gostava do desafio da situação, da incerteza do fúturo, em contraste com o total controlo que tinha de si próprio. A adrenalina vencia sempre sobre o seu medo e sobre a sua moral. Quando era pequeno costumava acreditar no pai Natal, embora ele nunca lhe tivesse trazido o que ele pedira. Até aos seis anos acreditou em Deus, até começar a fazer de tudo para não ter que ir à catequese aos sábados de manhã. Até aos oito anos ainda acreditou na mãe. Mas nunca acreditou na moral.
Nunca percebeu porque é haviam coisas que eram boas e coisas que eram más. Porque não eram simplesmente coisas. Porque é que as pessoas faziam o que lhe diziam que era mau e o obrigavam a actuar segundo o que lhe diziam que era bom. Ele tinha a sua própria consciência das coisas. As coisas, as coisas verdadeiras, como o céu e a chuva, são coisas complicadas. A moral é, simplesmente, demasiado simples para as coisas.
Mas ele não pensava nisto. Ele agora não queria pensar nisto. Sentia uma energia própria destas ocasiões brotar-lhe no corpo. Agora não tinha sombras, não tinha temores que o apagavam na escuridão. Tinha apenas um objectivo. Concreto e simples. Sólido. Sabia exactamente o que tinha a fazer.
Atravessou a estrada com passos firmes e largos. Pôs o joelho direito no chão, a flectiu a perna esquerda. Abriu a mala negra. Nela estava tudo o que precisava. Concentrou os seus dois olhos negros no buraco da fechadura.
2 palavras urbanas:
A literatura de que eu gosto
deixa-nos o doce sabor duma descoberta
ou o pesado sentimento do desejo insatisfeito
Li o teu texto e descobri que queria ler mais...
Por: Anónimo, Ã s 2:42 da tarde
Mais nos próximos Coisas Simples :). Para quem ainda não percebeu, esta é uma história com vários capitulos... ainda no príncipio.
Por: Unknown, Ã s 10:48 da manhã
Enviar um comentário
<< Página principal