Teoria da Ordem
“São os eleitos para quem as coisas belas apenas significam Beleza”
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray
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Foi num raio de sol. O Homem tinha passado dias, noites, tinha passado semanas, meses, anos, tinha dedicado toda a sua vida à construção daquela Teoria, e a resposta morava naquele único raio de sol. Pelas lentes dos óculos olhou os números, as letras, encavalitadas, deitadas sobre traços de fracções, agachadas sob raízes quadradas. Tanto desperdício de pensamento, e a resposta estava naquele singelo, raio de sol. Tinha descoberto o motivo matemático das coisas, a ordem sequencial de tudo o que era gerado. Apelidou as suas descobertas de Teoria da Ordem.
Foi num raio de sol. Dispensara muitos almoços e jantares, esquecera muitos livros sobre a mesa de cabeceira, descurara a saúde, tudo à espera daquele raio de sol, que sabia que viria. Quando ele chegou, porém, não reparou na sua doçura, pousando quente sobre a maciça mesa de madeira. Não percebera nele a sua secreta dança, a sua poética beleza. Apenas inferira nele a sua Teoria.
Diz-nos a História que foi uma maçã que segredou a Newton as leis da gravidade. Não nos diz se ele pegou na maçã e a comeu, saboreou, se se demorou nela, se apreciou as suas cores, se se deixou preencher da cor do céu ao cair do sol, do chilrear dos pássaros. Mas agora o Homem sabia que tudo tinha a sua ordem o seu destino. Sabia que a beleza era uma variável equacional, fruto da Ordem do tempo, do espaço, das coisas, estabelecida por aquela Teoria. Perdido isso, perdido até o acaso de formas, esgotava-se a beleza do mundo, por falta de argumentos.
Enquanto prosseguia a sua fúria científica, de definição da totalidade do Universo, o Homem viu o seu olhar escapulir-se do seu pensar e encontrar um livro. Não desses livros em que se inundavava, cheios de variáveis, números, cheios de constantes, expressões, derivadas. Não, aquele era belo. Fútil portanto.
Os olhos do Homem perderam-se naquela capa. Cheirou o livro, como se houvesse cheiro para cheirar. Abriu lentamente as páginas. Os sentimentos revolviam-se enquanto as suas mãos abriam o livro lentamente. Tudo o que não era belo perdia ali importância; também o tempo perdeu a sua. Tudo era lento, tudo era rápido. O Homem deixou-se consumir pela harmonia pecaminosa do livro. Inclinou a cabeça para trás e entregou-se a reflexões proibidas. Entregou-se à pureza das frases, que conferiam novos significados a mesmas palavras. Entregou-se.
Esqueceu por momentos o apelo da ciência. Deixou-se submerso pela cor do texto, perdeu a conta ao mundo. Esquecimentos desses são fatais – se a História não se lembra do paraíso das maçãs, mas apenas das maçãs do paraíso, também é verdade que são nessa mesma História muito presentes e muito recordadas as fatalidades. Desde que o homem sente, o homem erra. Desde que o Homem sente, o Homem erra. Agora caminhava o Homem errante pelo sabor doce de um bom livro, e já lhe parecia um erro a sua Teoria.
Seria a sua ruína, sim, mas uma bela ruína. Seria votado ao desprezo pela comunidade científica? Quem o sabe? Apetecia-lhe agora o caos, mas não um qualquer caos; apetecia-lhe as coisas dispostas de forma pura, singular. Apetecia-lhe forma, luz, cor. Apetecia-lhe arte. Para elem as linhas endiabradas rasgando quadros de arte moderna, ou os rostos angelicais das esculturas renascentistas ganhavam agora novo significado. Desvendava-se a solução do sorriso, do olhar de Mona Lisa, entendia-se a força de um quadro de Van Gogh, percebia-se a obsessão geométrica de Mondrian.
Em última instância, a sua natureza revelara-se na opção: preferiu ver o pôr-do-sol do que ser por ele iluminado. Agradava-lhe sem dúvida. Observou tudo o que pode até adormecer.
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray
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Foi num raio de sol. O Homem tinha passado dias, noites, tinha passado semanas, meses, anos, tinha dedicado toda a sua vida à construção daquela Teoria, e a resposta morava naquele único raio de sol. Pelas lentes dos óculos olhou os números, as letras, encavalitadas, deitadas sobre traços de fracções, agachadas sob raízes quadradas. Tanto desperdício de pensamento, e a resposta estava naquele singelo, raio de sol. Tinha descoberto o motivo matemático das coisas, a ordem sequencial de tudo o que era gerado. Apelidou as suas descobertas de Teoria da Ordem.
Foi num raio de sol. Dispensara muitos almoços e jantares, esquecera muitos livros sobre a mesa de cabeceira, descurara a saúde, tudo à espera daquele raio de sol, que sabia que viria. Quando ele chegou, porém, não reparou na sua doçura, pousando quente sobre a maciça mesa de madeira. Não percebera nele a sua secreta dança, a sua poética beleza. Apenas inferira nele a sua Teoria.
Diz-nos a História que foi uma maçã que segredou a Newton as leis da gravidade. Não nos diz se ele pegou na maçã e a comeu, saboreou, se se demorou nela, se apreciou as suas cores, se se deixou preencher da cor do céu ao cair do sol, do chilrear dos pássaros. Mas agora o Homem sabia que tudo tinha a sua ordem o seu destino. Sabia que a beleza era uma variável equacional, fruto da Ordem do tempo, do espaço, das coisas, estabelecida por aquela Teoria. Perdido isso, perdido até o acaso de formas, esgotava-se a beleza do mundo, por falta de argumentos.
Enquanto prosseguia a sua fúria científica, de definição da totalidade do Universo, o Homem viu o seu olhar escapulir-se do seu pensar e encontrar um livro. Não desses livros em que se inundavava, cheios de variáveis, números, cheios de constantes, expressões, derivadas. Não, aquele era belo. Fútil portanto.
Os olhos do Homem perderam-se naquela capa. Cheirou o livro, como se houvesse cheiro para cheirar. Abriu lentamente as páginas. Os sentimentos revolviam-se enquanto as suas mãos abriam o livro lentamente. Tudo o que não era belo perdia ali importância; também o tempo perdeu a sua. Tudo era lento, tudo era rápido. O Homem deixou-se consumir pela harmonia pecaminosa do livro. Inclinou a cabeça para trás e entregou-se a reflexões proibidas. Entregou-se à pureza das frases, que conferiam novos significados a mesmas palavras. Entregou-se.
Esqueceu por momentos o apelo da ciência. Deixou-se submerso pela cor do texto, perdeu a conta ao mundo. Esquecimentos desses são fatais – se a História não se lembra do paraíso das maçãs, mas apenas das maçãs do paraíso, também é verdade que são nessa mesma História muito presentes e muito recordadas as fatalidades. Desde que o homem sente, o homem erra. Desde que o Homem sente, o Homem erra. Agora caminhava o Homem errante pelo sabor doce de um bom livro, e já lhe parecia um erro a sua Teoria.
Seria a sua ruína, sim, mas uma bela ruína. Seria votado ao desprezo pela comunidade científica? Quem o sabe? Apetecia-lhe agora o caos, mas não um qualquer caos; apetecia-lhe as coisas dispostas de forma pura, singular. Apetecia-lhe forma, luz, cor. Apetecia-lhe arte. Para elem as linhas endiabradas rasgando quadros de arte moderna, ou os rostos angelicais das esculturas renascentistas ganhavam agora novo significado. Desvendava-se a solução do sorriso, do olhar de Mona Lisa, entendia-se a força de um quadro de Van Gogh, percebia-se a obsessão geométrica de Mondrian.
Em última instância, a sua natureza revelara-se na opção: preferiu ver o pôr-do-sol do que ser por ele iluminado. Agradava-lhe sem dúvida. Observou tudo o que pode até adormecer.
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