quarta-feira, fevereiro 16

Aquele Inverno

Garantiam-me que o silêncio gélido da manhã um dia passaria, que melhores dias viriam, que as nuvens eventualmente se dissipariam, que a chuva pararia de cair, mas a verdade é que aquelas manhãs eram sempre iguais, assim, escrevendo no vidro embaciado da janela mensagens de sentido oculto até para mim. No fundo, nem eu sabia se estava preparado para algo diferente, para um sorriso, ou sequer para um ligeiro sentimento de alegria. Naquele marasmo em que me tinha enfiado tudo era igual e ínsipido, e qualquer outro aroma era passível de me chocar.

Escolhia sempre o mesmo lugar no mesmo autocarro, que tomava todos os dias; às vezes sorria, mas fingia não sorrir, só para não deixar as outras pessoas desalentadas
– Lá vai alguém que sorri, quem me dera poder sorrir assim,
e acabava por me habituar a uma tristeza que não me pertencia a mim mas aos outros passageiros, aqueles seres tristes de semblante carregado, escondendo a rotina por trás dos jornais tablóides.

Um dia vi-a, pela janela, que, excepcionalmente, não estava embaciada. Foi um momento fugaz, desapareceu, o autocarro virou a esquina, mas chegou para me fazer sorrir, o que nitidamente perturbou grande parte da minha vizinhança – não suportavam o mais leve rumor de felicidade que destoasse naquele silêncio pétreo.

Apesar de tudo, nunca ninguém chorou naquele autocarro, tenho a certeza, provavelmente porque ninguém tinha nada para chorar, só aquele infinito sentimento de que está tudo na mesma – inevitavelmente e à falta de gestos que mudassem esse estado, estava realmente tudo igual.

Naquele dia o autocarro estava prestes a arrancar, eu sentado no mesmo lugar de sempre, e as expressões faciais como sempre fechadas, sérias, impávidas e solitárias. Mas ela entrou no autocarro. Sentou-se à minha frente, e sorriu. Indubitavelmente, aquele gesto irritou todos os restantes passageiros.

– Como se atreve?
era a pergunta congelada nas bocas eternamente fechadas de todos eles. Eu, saturado daquele ar moribundo que possuía por complacência, olhei-a nos olhos e sorri também. Foi um sorriso tímido, e sei que ela reparou nisso. Já perdera o hábito, e era-me díficil atravessar o constrangimento de sorrir naquele autocarro.


– Não fazes isso há muito tempo, hã?
– Não.


Um último olhar, pesado e invejoso, procurou as minhas costas, enquanto eu abandonava o autocarro, de uma vez por todas. Um dia ou outro, tinha que abandonar aquele autocarro porque, decididamente, o Inverno não é para mim. Deixei no vidro embaciado um poema, um poema que não sabia escrever, e ela ficou abandonada áquelas palavras mudas de passageiros taciturnos que cobiçavam o seu cândido e ingénuo sorriso. Correram no vento boatos que a negra expressão da tragédia mundana fez desvanecer um dia esse seu sorriso, mas tenho esperança, para bem deste mundo, que não sejam mais que boatos correndo no vento.

2 palavras urbanas:

  • poderá o Inverno nunca ter um fim? não sei responder, só talves lembrar o que alguém que voltou, veio contar...
    já nem me lembro a última vez que entrei no autocarro. pedi-me a mim própria para esquecer. mas contaram-me que melhores dias não chegaram a vir, as nuvens não deram um passo, e a chuva teimava em bater no chão da rua e na parte de cima dos guarda-chuvas apressados... mas eu concordo com a eamane, é preciso ser diferente, aceitar essa diferença e não ter medo dela. Ter sempre tempo para sorrir. sorrir para nós e para os outros. sorrir por dentro e para fora.
    tas muito fixe, webdreamer!

    anonymous

    Por: Anonymous Anónimo, às 10:29 da tarde  

  • A vida é um eterno Inverno e só nos cabe a nós alterá-lo e fazer dele um linda e solarenga tarde de Primavera. Como disse o Frota (provavelmente deve-o ter ouvido de outra pessoa): "a vida são umas férias que a morte nos dá" por isso toca a viver e a aceitar a diferença porque ao fim ao cabo somos todos diferentes e todos iguais.

    AS

    Por: Blogger Blogger, às 9:57 da tarde  

Enviar um comentário

<< Página principal