quinta-feira, janeiro 20

De olhos bem fechados

“Mais um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade”
Daniel Filipe in “A invenção do amor”


De olhos bem fechados absorvo os odores, os sabores, as luzes da cidade. De olhos bem fechados a cidade perde a sua dura nudez, a miséria esconde-se em longos silêncios, becos sem saída, e ganha uma forma poética que nunca se atreve a assumir sob a força de uns olhos abertos.

De olhos bem fechados os meus sentidos captam almas que eu nem sonhava existirem na cidade. Captam palavras perdidas caminhando ruas, selando negócios, começando e terminando histórias de amor, captam a essência da cidade, aquilo que, filtrados os ódios milimetricamente calculados ou as amizades estrategicamente pensadas, sobra como fulcral.

De olhos bem fechados, vejo os sons que ouço virarem a esquina e esconderem-se de olhares estranhos,
- Sim...
e a resposta, vendo que ninguém os olha e sem suspeitar que eu os vejo ouvindo e sentindo, deixa-se surpreender,
- Sim?...

Afinal é uma só a palavra que dobra a esquina - mas duas as bocas que a murmuram, duas as bocas que se encostam, que cantam sons inaudíveis sob o luar, sob o crescente canto de anjos no céu. E no beijo se embaraçam as almas uma na outra, e cresce o amor e o canto dos anjos.

«I see friends
shaking hands,
saying “How do you do?”»

Num automóvel apressado, músicas novas atropelam as antigas. As letras, vazias pelo muito que foram escutadas, pelo muito que foram vendidas, parecem de súbito sinceras e credíveis, vistas pelos meus bem fechados olhos.

«But what they’re
really sayn’ is
I love you»

As luzes da cidade, as luzes dos faróis dos carros, as luzes das janelas dos prédios, as luzes dos candeeiros que alumiam a estrada, a luz dos placards publicitários, as luzes da cidade, todas, dançam alegremente até se perderem no escuro dos meus olhos bem fechados. Iluminam o cantar dos anjos e com ele se perdem no horizonte escuro.

O beijo termina. Outro começa, noutra cidade, com outras luzes, outros sons, outros sabores, outros odores. E também esse terminará. Numa qualquer rua escura, escondida, olhos fechados, olhos abertos, lábios colados, lábios selados, em qualquer rua iluminada, aberta, o Mas este beijo, este, desta cidade, tenho a certeza que é só o príncipio. Tenho a certeza de que mais sins se seguem,
(- Sim, aceito.)
tenho a certeza de que mais beijos se darão, tenho a certeza de que ele lhe apertará a mão numa cama de hospital, tenho a certeza de que ela o amparará na queda e o consolará na tristeza, tenho a certeza de que o seu amor será desses que se pensa eternos porque a vida se cansa antes do sentimento.

De olhos bem fechados posso ter essa certeza, porque de olhos bem fechados se esconde de mim a crueldade fria da cidade, e então resta apenas essa certeza animal de que a alma é dominada pelo sentimento. A minha certeza tem a fraqueza de pensar que se abrir os olhos verei o amor já morto, e por uma vez, por esta única vez, estou determinado a não deixar que isso E por isso me deixo ficar assim. De olhos bem fechados.

1 palavras urbanas:

  • deixa-os assim.
    ou então acorda e vê como a cidade está a melhorar.
    e ajuda-a. porque ao minimo acto de crueldade ela piora, e assim vamos ter de ficar todos de olhos fechados quando muitos a fizerem má e cruel.
    aí o amor morrerá, de facto. não voltará mais de terras distantes, onde sentia a nossa fata.
    por isso ajuda a cidade, e então o amor ressuscitará, e para nós. para nós todos e para os todos os outros.

    fica o apelo e um beijo,
    anonymous

    Por: Anonymous Anónimo, às 5:31 da tarde  

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