terça-feira, janeiro 11

O passado não mora mais aqui

Esta é uma noite antiga. É aquela noite. Lembras-te? Pois eu lembro-me; lembro-me de todos os aromas, de todos os canteiros floridos, de todas as cores. Lembro-me de todos os recantos, lembro-me das casas brancas refulgindo com o brilho etéreo do luar, lembro-me do caminho ermo, escuro e sinuoso que não ia dar a lado algum. Lembro-me do uivo dos lobos na montanha...

Não havia lobos na montanha. Eu não me lembro do uivo dos lobos; mas lembro-me das ladainhas do vento. Não era um vento forte; era um desses que surge da inspiração voando numa noite de Verão.

Não, os lobos não pertencem a essa paisagem. E o vento não era forte, não. E houve um instante até, em que todos os movimentos cessaram. Não sobrou no ar nem o mais súbtil dos sopros outonais. Os olhos rolavam na tentativa de explicar o seu espanto. Lembras-te?

Eu lembro-me, sim. E foi então que um pássaro cortou o céu em duas metades, e toda a vila estremeceu. No cenário bucólico, duas mãos humanas, pelo mero anseio de mudança, preparavam-se para quebrar a monotonia da forma mais violenta. Todos pressentiram um crime quando a melancolia da linha do horizonte se quebrou.

Sim. E então eu corri e afastei o cano frio da arma. Os tiros abruptos perderam-se no ar e não feriram ninguém. A arma esgotou-se, a crueldade esgotou-se naquela noite, ali. Estranho. Não me lembro das mãos que seguravam a arma.

Não estranhes. Fui eu que te pedi para esqueceres. Não te lembras? Era esta a arma. Era este o cano frio que afastaste e selaste. Mas hoje é uma daquelas noites. Será que vale a pena, a vida?

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Por um momento, o meu corpo arrefeceu gravemente. Ficou hirto. Eu lembro-me sim. Tudo quanto consigo agora é beber-lhe as amargas palavras, mas a minha boca esboça sons. Eu já não tenho mãos de poeta. Finalmente o som dos tiros, soam secamente no silêncio suspenso. Sãos sons ensurdecedores, que ficam a ecoar na minha cabeça como uma memória que eu quero esquecer. A minha boca esboça sons, mas de forma inútil: está completamente seca. De súbito apercebo-me de que todos os corações continuam a bater na mesma cadência. Era o álbum de fotografias que tinha sido desfeito. A minha boca está completamente seca. É a dele que fala.

O passado não mora mais aqui. Talvez o caminho solitário, talvez a vila reluzindo sob a lua cheia, talvez as flores – o passado não mora mais aqui.

1 palavras urbanas:

  • a vida vale a pena, nem que mais não seja para vir aqui e ler os teus textos numa tarde calma, ao pôr-do-sol, que se vê pela imensa janela da marquise da sala, num aborrecimento tal, que já nada sabe bem, apenas plavras. palavras urbanas. palavras urbanas que escreves tao bem. obrigada.
    o passado não mora mais aqui, não. o que mais cá mora é o futuro, e o que o faz: o presente. mas o presente ficará na memória até ser passado, e para gostarmos do futuro, teremos de fazer agora, no presente, que depois se tornará passado, mas mudificará o futuro. porque um momento pode mudar tudo. e como quero gostar do futuro, e ter boas recordações do passado, venho aqui, ler as tuas palavras, que tiram a seca ao resto do dia, e dão-lhe a água; tiram a embalagem que sufoca e temperam deliciosamente para depois ter o prazer de saborear o objectivo.

    obrigada.
    desculpa.
    anonymous...

    Por: Anonymous Anónimo, às 5:26 da tarde  

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