terça-feira, fevereiro 8

A quiromante

O vento sopra baixinho as melodias com que a minha mãe me costumava serenar o sono. As montanhas pálidas quase se desfazem no céu de um azul muito claro, rasgado pelo voo altivo de um pássaro negro. É um mau presságio. Sinto no ar o cheiro aziago da morte misturando-se com o odor doce das clementinas
– Olha as clementinas boas, o saco cheio a um euro, um euro só,
apregoadas no outro lado da rua. Não é a primeira vez que tenho pressentimentos nefastos, por isso cruzo os braços e neles descanso a cabeça, como que num gesto de submissão perante a fatalidade do destino.

Fico ali, parada, observando os espíritos transeuntes que passeiam no quotidiano. Remexendo num contentor, um sem-abrigo, com a face embrutecida pela vida, os dedos grossos remexendo o lixo dos outros, sem esperanças, sem vontades, como se apenas um desejo último de sobrevivência o mantivesse vivo; passa ao lado, absorta, uma mulher, com um ar confiante e introspectivo, um leve sorriso despontando nos seus lábios de tempos a tempos; depois um outro homem, envergando uma gabardina ocre, cabisbaixo, olhando o chão que pisa, derrotado; e a figura oposta, saindo da estação de metro, com um ar plenamente feliz, o rosto iluminado, quase pulando de alegria, um rapaz novo – é díficil adivinhar o que de tão bom lhe sucedeu, se ganhou a lotaria, se ganhou no amor, se ganhou ao terror de si mesmo, enfim, quem saberá, a alegria é tão mais insondável e misteriosa do que a tristeza...

Vejo, com os olhos. Um homem, ligeiramente curvado sobre si mesmo, olha tudo à sua volta desconfiado, como se tivesse receio de ser reconhecido a caminhar na minha direcção. Veste um fato impecável, e usa uma gravata azul clara com riscas brancas. Talvez tenha vindo ou talvez vá a uma entrevista de emprego. Conheço-o; já cá vieram outros como ele. Tentou o psiquiatra, mas não resultou; os amigos não o conseguiram recompor; a mulher talvez tenha até pedido o divórcio; por fim, goradas todas as tentativas, todas as hipóteses automáticas, todas as formas racionais de abordar o assunto, estou cá eu.

– Porque não experimentar?, ter-se-á ele perguntado, Porque não? Pior não ficará, não me custa tentar.

E ali vem ele, quase fazendo pouco da sua própria desgraça, experimentando ainda alguma relutância em me consultar. Mas, por fim, abeira-se de mim, cumprimenta-me educadamente – mantendo a cabeça, erguida, continua a despistar possíveis testemunhas –, pede-me ajuda.

Peço-lhe a mão e ele estende-ma. A minha visão carrega já o peso do tempo, preciso de óculos para observar as linhas que se intersectam. A quiromancia é uma ciência milenar; em mim, pelo uso e pela prática, é um instinto. Foi a minha mãe que me ensinou a arte, como a mãe dela a ensinara a ela.

Peço-lhe a mão e ele estende-ma. Através das lentes, leio: a linha da Cabeça, a linha do Coração, a linha da Sorte, a linha da Saúde. (Há qualquer coisa de profundamente atraente em intrometer-nos na vida alheia lendo-a numa mão.) A linha da Vida.

Percebi na pupila do homem que ele reparara: a minha cara tornava-se pálida, os meus olhos arregalavam-se, a minha expressão era, toda ela, tomada pelo terror. Gostava de lhe dizer, Eu não sei, eu não vejo nada, mas quando alguém como eu diz isso é tomado por uma fraude. Mas se dissermos algo abstracto, algo que tenha uma enorme probabilidade de ser real, apesar de nada nos indicar que seja, então acreditam-nos. De momento, porém, o meu problema não é não ler nada na palma desta mão, antes ver nela demasiado bem. Domino-me, recomponho-me. As coisas vão começar a correr melhor, digo-lhe, A sua mulher ainda o ama, e arranjará emprego em breve. Ele suspeita, evidentemente. Está na sua natureza. Para mais, tem razão, eu não lhe digo a verdade. Eu sei-a mas não lha digo.

Recuso-lhe a nota que ele me entrega. Sei que é o mínimo que posso fazer. Ele insiste mais uma vez, eu nego-lhe uma vez mais. Então, sempre com o seu ar desconfiado, afasta-se, a passos largos.

Atravessa a estrada, olhando sempre em frente. Um autocarro à direita. O poder da adivinhação é uma coisa terrível.

2 palavras urbanas:

  • "O vento sopra baixinho as melodias com que a minha mãe me costumava serenar o sono"

    Frase bela e magnânima.
    Rendida á tua escrita perene.

    1 Bj*
    Luísa

    Por: Blogger luadepedra, às 10:21 da tarde  

  • é, não é?
    o poder da adivinhação e a sua responsabilidade...
    são coisas terriveis. foi por isso que as deixei. quando as coisas corriam mal... eu também fazia o que disseste. dizia que tudo ia melhorar, tudo se viria a recompôr. as pessoas ficavam mais felizes, o resto do dia corria melhor, e tentavam fazer as coisas com mais calma.
    mudavam o rumo da vida, e esta tinha mais sentido. mais sabor. e não gostava de mentir, logo, deixei tudo para trás.
    estou mais feliz onde estou e como estou.
    o teu post está muito fixe e relata o que pode realmente acontecer.
    força webdreamer!
    jocas
    anonymous

    Por: Anonymous Anónimo, às 7:54 da tarde  

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