quarta-feira, maio 18

Sinfonia No. 1 em D maior

Um rubor mais intenso preencheu as faces de um rosto tão criança. Suava todo paixão e arte. De infantil só não tinha as mãos finas e brancas, de dedos longos, de pianista - porventura disformes, mas tão belas, aquelas mãos! - que estendia pelas teclas brancas e pretas do piano com um talento instintivo. O mestre tinha os olhos fixos no pequeno Hans e na música improvisada que abandonava a cauda distante e negra do piano com uma melódica suavidade.

As mãos de Hans continuavam a dança sobre aquele doce céu de baunilha e chocolate, as mãos também elas cantantes e melódicas, flutuando, enchendo o ar de notas tão fluídas e naturais que pareciam existir desde a criação do Mundo. Tanto que o Conselheiro abandonou de imediato a sala, desajeitado e trouxe Sua Sereníssima e Altíssima Majestade para ouvir aquele harmónico rio que descia pelo comprido piano de cauda.

Sua Sereníssima e Altíssima Majestade infelizmente não entendia nada de música, tinha um ouvido desgraçado, e uma inabilidade inata para tudo o que exigisse esforço. Estava ali disposto a aplaudir o que o Conselheiro aplaudisse. De resto apenas se vangloriava nas cortes estrangeiras de ser o grande mecenas dos grandes artistas, muitos dos quais, afinal, achava maçadores, mas que tolerava porque o Conselheiro lhe segredava ao ouvido, Óptimo músico não acha? Os nossos serões musicais são certamente invehados em toda a Europa, e então ele fazia um sorriso cansado e enfastiado e respondia que sim, que sim, que eram realmente muito bons.

Mas aquilo era diferente, completamente diferente. E mesmo a Sua Sereníssima e Altíssima Majestade pareceu a música divina. Era realmente maravilhosa. E com que destreza fazia do repetido martelar das cordas música aquele rapaz! As teclas brancas perdiam-se na alvura das suas mãos, prolongamento inevitável...

Sim, sim, disse Sua Sereníssima e Altíssima Majestade, sim, sim, temos que o ter cá, na corte, trate disso, e o mestre sorriu, sim, sim, agora todos os teatros do país abririam as suas portas ao púpilo, e ele próprio granjearia da fama que como pianista nunca conseguira obter.

quarta-feira, maio 11

Diálogo a uma só voz sobre viver cada dia como se fosse o primeiro

- Sabe, a Mónica estava mesmo decidida a viver os seus dias como se fossem o último, sabe?
Dizia-o, com a sua voz rouca e lacrimejante, um senhor alto, com as costas curvas pelo esforço de olhar a realidade cá em baixo com os seus castanhos olhos miúdos. Não falava para ninguém, apenas para toda a gente. Vinha todo vestido de negro, que ostentava como única flor o seu sorriso nostálgico, saudoso, desses que acontece quando nos perdemos nas fabulosas memórias de um passado que nunca existiu.

E tinha sido aquele o seu último dia da sua vida terrena. Encontraram-na havia duas noites, deitada no chão, com os braços estendidos sob o chão frio de azulejos.

Mónica acordou, logo de manhã, sentiu-se vazia. De uma prateleira baixa do armário tirou uma caixa vermelha e abriu-a sobre a cama. Tirou as cartas de tarôt e virou-as uma
(carta da morte)
a uma,
(carta da morte)
virou-as todas com o mesmo gesto e sempre saía a mesma figura,
carta da morte.
Era aquele o seu último dia. Sabia-o. E decidiu vivê-lo como se fosse o último.
Tinha tudo escrupolsamente planeado desde os cinco anos: sempre soubera que curso ia tirar, com quem ia casar e em que idade, quando compraria a casa... E socorrera-se sempre dos métodos de adivinhação para evitar os imprevistos que surgissem. Acabara de escrever a autobiografia de toda a sua vida aos dezoito anos, e estava convicta de que não teria que mudar nem uma linha.
Mas não planeara isto: um dia, sentia-se vazia, um dia, uma, duas, tantas cartas de tarôt!, um dia, carta da morte, um dia morreria só numa casa gelada e quase sem janelas, só um quarto, uma sala, uma cozinha, pouco mais.
Não se ouvia na rua o som de uma alma que fosse. Ninguém a percorria com o rosto fechado, dentro de um kispo azul, de um sobretudo verde ou de uma parka vermelha, olhando o céu cinzento e revolto. Apenas o metódico rufar da chufa caíndo sobre o telhado dos prédios, sobre o capôt dos automóveis mal estacionados, sobre o alcatrão da estrada.
Era aquele o seu último dia. Sabia-o. E decidiu vivê-lo como se fosse o último.
"Mónica teve uma vida preenchida. Deu a volta ao mundo a bordo de um veleiro. Tornou-se uma actriz famosa. Frequentou os locais mais respeitados. Ficou milionária com apenas trinta e dois anos." Era o que se lia na obra que contava a sua vida. Mas não! A verdade aparecia-lhe agora assim, horrenda: morreu só, trancada num quarto. Sabia agora que tinha que preencher rapidamente a sua vida com o conteúdo das trezentas e setenta e seis páginas daquele livro; acelerar a vivência de mais cinquenta e sete anos e resumi-la a um dia só.
Pensou no que ia fazer naquele dia todo o dia; e esse pensamento consumiu-a. Viu chegar a lua com angústia e desnorte. Nesse dia a lua iluminava bem toda a rua, e penetrava magníficamente na cozinha pela única janela de todo o apartamento. Com os pés descalços, e envergando apenas a camisa de noite que nunca tinha chegado a despir, Mónica entrou na cozinha, sentindo o chão gelado sob os seus pés, e decidiu tomar um comprimido para dormir. Esqueceu de ler a posologia, porém, e tomou duzentos e cinquenta e três comprimidos.
Foi aquele o seu último dia da sua vida terrena. Encontraram-na naquela noite, deitada no chão, com os braços estendidos sob o chão frio de azulejos.