quarta-feira, novembro 30

Coisas Simples 5

A primeira coisa que descobriu quando abriu os olhos foi que o tecto era branco. Noutra ocasião isso não teria qualquer importância. Naquele instante era a única coisa que sabia. O que sabemos é sempre importante. O quanto sabemos nem tanto. O tecto era branco. E liso.
Não se lembrava do nome. Não sabia porque estava ali. O tecto era branco. Um tecto branco é uma coisa que existe. Sabe bem saber que existe. Talvez não existisse. Mas aquele homem que agora olhava o tecto branco não era desses que questionavam a existência das coisas. Há algo de especial em saber que a realidade é real assim. Sem mais perguntas, sem impertinências. O tecto é branco, pensou, e sentiu-se real. O tecto era branco. Naquele instante era a única coisa que ele sabia.


O tecto é branco, pensou novamente. E depois concluiu que Os tectos brancos cansam. Fechou as pálpebras. O escuro. Temos os olhos fechados. Nós não vemos nada de olhos fechados. Mas o escuro que vemos de olhos fechados é tão real como o tecto branco. O zumbido de uma mosca. A mosca pousou sobre o parapeito. Ou sobre o braço de alguém. Depois ouviram-se passos no corredor. Eram passos distantes. Depois tornaram-se passos próximos. Alguém entrou na sala, percorreu o corredor. Disse qualquer coisa. Era um homem. Tinha voz grave, texturada.

Chamo-me Joaquim, pensou o homem, o que estava deitado e sabia que o tecto era branco. Veio como uma revelação. Sem que se saiba bem porquê. Em conveniente momento, diga-se. Assim podemos distinguir o homem de voz grave do outro que sabe que o tecto é branco. Ficamos é sem saber se esta conveniência é desígnio de algo que nos é superior ou se é simples coincidência. E esta designação, a de simples coincidência, é, em verdade um paradoxo, porque as coincidências não são simples.

Os passos voltaram a soar. Devia ser o homem da voz grave, que voltava a onde viera. Pausa. Depois novamente o som da sola dos sapatos sobre os ladrilhos do chão. Uma porta abriu-se e fechou-se. Não se ouviram mais passos.

sei muita coisa, congratulou-se Joaquim. E era verdade. Há poucos minutos atrás não sabia nada. Depois que o tecto era branco. Depois que há silêncios frios neste mundo. Depois que neste mundo sobram também as moscas. E que estas zumbem. E que ainda habita por aqui alguém que caminha. O que nos lembra que existem sapatos e pessoas que os calçam e solos em que se caminha. E ainda que esse alguém tem uma voz grave. Agora descobria Joaquim que se chamava Joaquim.

Tentou lembrar-se. Onde estou?, pensou. Onde quer que seja, este lugar existe. Tenho a certeza. Talvez nada exista. Mas isso não é relevante. Pelo menos para mim. Onde estou?

Não conseguia mexer os braços. Nem tão pouco rodar a cabeça no pescoço. O cansaço prendia-lhe os movimentos. E depois havia outros impedimentos físicos. Algo que ele não sabia o que era, porque não podia ver. Mas eu explico. Era um complicado sistema de longos tubos de plástico transparente e de fios que brotavam de braços. Os fios ligavam-se por sua vez a um monitor. E uma máscara de oxigénio cobria-lhe a boca.

sexta-feira, novembro 25

O Caso

Ele fez da boca um sorriso que não era um sorriso. Fez da boca um esgar sádico e prepotente. Era verdade que palavras como sádico e prepotente não constavam do seu dicionário, mas isso nunca lhe impedira de ser sádico e prepotente. O seu dicionário era, de resto escasso em vocábulos. A sua biblioteca resumia-se a uns escassos livros de capa dura, ornamentando uma prateleira. Um de Albert Camus, outro de Dostoievsky e ainda um Guia de Restaurantes de Mil Novecentos e Noventa e Sete. Nenhum deles lido, à excepção do último, do Guia, que me ocorre agora ter tido uso em algumas ocasiões. O que se passou a seguir é história sabida. O homem puxou dos pulmões o ar; o oxigénio, o dióxido de carbono, o azoto fizeram vibrar as cordas vocais retesadas; as partículas atmosféricas vibraram, formando o que parece que se chama ondas sonoras; e um ouvido que era alheio ao homem de poucas letras vibrou também, em sintonia.

Na sala não havia a luz filtrada por persianas, nem a cadeira de couro, nem a mesa de madeira maciça, nem dois sapatos em cima dela, nem nenhum dos factores que contribuem para que nos apercebamos, num filme, que estamos perante um escritório de detectives. Eu tomava conta do caso. Não é confidencial. Também não é notícia de jornal. Talvez tenha sido abafada por instâncias superiores. Ou talvez já não seja notícia para ninguém. Ou talvez seja tabú.
O crime é mais de tortura do que de assassínio. Vem-se arrastando de há tempos a esta parte. De há largos tempos a esta parte. Há quem diga, à boca pequena e de escárnio, que a vítima nasceu para ser assim martirizada até à morte. A vítima, embora de baixa estatura, era larga em recursos. Sempre em metamorfose permanente. Era usual que a vítima se deitasse sobre a palma de umas quantas mãos que a seguravam e a olhavam atentamente. Os corpos que as mãos possuíam tinham por vezes as costas recostadas em cadeiras de esplanada, outras vezes em confortáveis sofás. Alguns desses corpos deitavam-se sobre colchões de mola. Nessas ocasiões podia suceder que, passado umas horas, as mãos pousassem a vítima numa mesa de cabeceira e apagassem do candeeiro a luz.

Vulgarmente o caso é conhecido por Assassínio da Língua Portuguesa. As provas abundam. Infelizmente os suspeitos também e as penitenciárias não têm vaga para tanta gente. E mesmo que tivessem tem-se verificado existir um vazio legislativo no que respeita a esta matéria. Não sei se o irmão galego desta Língua anda melhor e mais feliz que ela, mas, falando a verdade, o caso não me diz respeito.

A verdade é que, apesar de tantas vezes ter sido anunciado o óbito da Língua, esta parece renascer das cinzas. Como se criasse vida da morte. E ainda enche as livrarias. Ou as bibliotecas, para quem se queixa que o papel impresso anda caro e de que a vida não está fácil. E, em lugar de falecer, agonizada, tem-se dito que evolui. Apesar de se ter perdido o pê agá para o éfe a Língua parece ter resistido incólume. Ainda hoje vagueia por aí. Já não na ponta da pena de um Luís Vaz de Camões mas talvez no teclado do computador pessoal de José Saramago ou José Luis Peixoto.

Pedem-me que trate do caso. Estou agora a pensar se o caso precisa de tratamento. Ou se a Língua se limita a desdobrar para satisfazer todas as necessidades. E que nunca se observará o consumar do Assassínio, mesmo que a própria vítima apareça estropiada em público, por ignorância ou falha, voluntárias ou não. Mesmo que entrem palavras estrangeiras pela fronteira, clandestina. E mesmo que tardemos mais em torná-las nossa propriedade – utilizando-a com uma ortografia e sonoridade nossas – do que elas em nos invadir. E mais do que pensar assim, tenho nisso grande esperança, porque em sendo a nossa Língua tomada por legiões lexicais que lhe são estranhas, ou em sofrendo homícidio por negligência perde Fernando Pessoa a pátria. O que, por ser um dos poetas que a poesia tem de melhor, ou antes, por uma outra razão muítissimo mais válida, que é a dele ser um poeta, seria, evidentemente, de lamentar.

sábado, novembro 19

Coisas Simples 4

A janela estava aberta há muito tempo. Talvez ninguém tenha reparado ainda. Mas ontem choveu. Quatro dedos tocam as gotas de chuva no parapeito de madeira da janela. Os dedos eram brancos. Os dedos eram frágeis. E longos como os de um pianista. Ou como uma pessoa que tem os dedos longos. E os estica para alcançar a lua. Mas nunca a alcança. A lua sempre foi demasiado distante. Aqueles que já esticaram os seus braços com esse intento sabem do que estou a falar. Estava lua cheia e era uma noite de Novembro. Mas mesmo as luas cheias são distantes.

Os dedos eram brancos e eram de Maria. Maria pensava em como Todas as noites de Novembro são iguais. Pensava-o como se não pensasse. Porque não lhe importava se por acaso todas as noites de Novembro fossem realmente iguais. Nem tão pouco lhe importava que provavelmente o não fossem.

A casa era grande. Ou talvez não fosse grande, mas era muito maior que Maria. A casa estava vazia. As casas grandes e vazias são apavorantes. As divisões parecem prolongar-se sem fim, num silêncio escuro e sem nome. Parece-se demasiado com o futuro, pensava Maria. A Maria não incomodava o escuro. A Maria não incomodavam os olhos e a visão. Incomodavam-lhe os sons, os gemidos, os estertores agitados de uma casa que dormitava sobre um passado inquieto.

Maria fechou a janela. Estava frio lá fora. A brisa fere como as verdades nuas. Agora a janela estava fechada. Recomeçou a chover. Maria encosta a sua mão à parede. Maria sentia a parede. Depois a mão perde-se no ar. No nada. Não, nada não. Era uma entrada. Maria entrou na sala. O chão era frio e Maria tinha os pés descalços. Toda a sua espinha se retorceu num arrepio. Maria seguiu em frente, pé ante pé. Maria sabia onde estava o banco. Estava dezoito passos a seguir à entrada da sala. Maria tocou o banco com a mão, girou sobre ele, sentou-se. Aconhegou-se no banco negro. Esticou os dedos. Os dedos eram brancos. Os dedos eram frágeis.

E longos como os de um pianista. As teclas são brancas para as oito notas principais. As teclas são negras para os meios tons entre as notas. Excepto entre o mi e o fá, que têm apenas meio tom entre si. Maria não sabe porquê. Maria sabe as teclas de memória. As brancas e as negras. E as músicas. As de Mozart, de Bach, de Schubert, e as de outros menos famosos que estes.
Mas quando Maria tocava ela não se preocupava com nada deste mundo. E preocupava-se com muito pouca coisa do outro. Quando Maria tocava piano apenas tocava piano. As notas fluiam numa cadência tão óbvia que parecia ser a única coisa a bater certo no mundo. Nada no mundo é mais real do que isto, pensava Maria.

Os pés moviam-se nos pedais. Os dedos nas teclas. A pressão era controlada minuciosamente. E as mãos deslizavam para a esquerda e para a direita no teclado. Percutiam-se as cordas. Piano, piano, meioforte, pianíssimo. Para lá da melodia era o abismo. O ruído ou o silêncio. Ou o que quer que fosse o abismo. O mundo era Maria, um banco preto de altura regulável, um longo piano de cauda, negro e luzidio.

Aquele piano de cauda era a única extravagância de Maria. A bem dizer era o único objecto que Maria realmente alguma vez sentira necessidade. Ele era estritamente necessário. Talvez não fosse uma extravagância. Ela sabia que se podia perder no piano para toda a eternidade. Ficar ali, jejuando de comida e de bebida. Ficar ali sem dormir nem sonhar mais do que aquele momento eternamente presente de cordas sucessivamente presas e soltas que vibravam.

O único senão era que todas as músicas tinham um fim. As músicas de Maria geralmente entrelaçavam-se entre si numa só. Mas esta música também tinha um fim. Talvez como todas as coisas. Ou talvez não fosse um fim mas um novo príncipio. Talvez como todas as coisas.

quinta-feira, novembro 10

Coisas Simples 3

Era uma pessoa de hábitos. Adormecia sempre virado para a direita, mas acordava sempre para a esquerda. Colocava sempre os dois pés nos chinelos beges ao mesmo tempo. Sempre tivera chinelos beges. Rodava a maçaneta da porta do quarto com uma mão. Com a outra afagava o cão de pêlo negro e luzidio que sempre o esperava do outro lado. O cão esperava sempre do outro lado. Também naquele dia acordou. Para o lado esquerdo, como sempre. Calçou ambos os chinelos beges, rodou a maçaneta da porta do quarto com uma mão. Mas não havia nenhum cão de pêlo negro e luzidio esperando-o do outro lado.
Se aquele homem alguma vez antes tivesse sonhado, teria julgado que aquilo era um sonho. Mas aquilo não era um sonho. O cão jazia, negro e prostrado a meio do chão do vestíbulo. O vestíbulo era muito, muito comprido. O vestíbulo costumava ser exíguo. Mas naquele dia era muito muito comprido.
As suas mãos tremeram, como só a frustração pode fazer tremer umas mãos. Deitou-se no chão do corredor. O chão era frio e impassível. O chão não fala. Quando uma pessoa olha para o chão não vê nuvens, nem sóis, nem Primaveras. Duas lágrimas, transparentes como todas as lágrimas sinceras, brotaram-lhe dos dois olhos. Assustou-se, porque nunca antes tinha chorado. Ou talvez tivesse chorado antes. Mas se tinha chorado não se lembrava, e por isso era como se nunca tivesse chorado.
quatro anos que aquele cão o esperava fora do quarto. Ele não se lembrava de mais nenhuma data importante, excepto a de um dia de há quatro anos atrás. Era um fim de tarde. Chovia nesse fim de tarde. O cão espreguiçava-se em frente a uma porta de um prédio. O cäo pensava Esta porta de prédio é igual a todas as portas de prédios. Ou talvez não pensasse. Mas aquela porta de prédio era diferente de todas as portas de prédio. O homem chegou e olhou o cão. O pêlo negro e luzidio estava húmido e pingava. O cão ergueu a cabeça e olhou o homem olhos nos olhos. O homem nunca tomara decisões repentinas, muito menos em fins de tarde com chuva. Mas aquele não era um fim de tarde como todos os fins de tarde. Por isso o homem entrou no prédio, sacudiu o guarda-chuva preto na rua, olhou o cão olhos nos olhos e convidou-lhe a entrar. O cão entrou e sacudiu-se e encheu a entrada do prédio de gotas que eram transparentes como são transparentes as lágrimas sinceras.
Ele era um daqueles homens a quem nunca apeteceu perguntar porquê. Não era que ele não conhecesse a palavra. Simplesmente evitava-a quando podia. Ele preferia não perguntar porquê e continuar a chorar sem razão. Porque preferia assim nem ele sabe nem se incomodou a perguntar.
A história do cão era diferente. Os cães não choram. Os cães ganem, latem, mostram nos olhos a sua dor. Mas os cães não choram. Este nunca teria chorado, porque sempre viveu numa espera quieta por algo que não sabia bem o que era. Os habitantes da rua de baixo sabiam quem ele era. Costumava espreguiçar-se em frente ao café. Por vezes deitava-se à sombra de uma das mesas da esplanada. Outras vezes preferia outros lugares. Gostava muito de se esticar na melancolia morna da calçada da rua aquecida por um sol de Verão.
O café fechava às nove. O café só servia almoços. O café era pequeno. No fim do dia o dono do café costumava trazer uns quantos ossos e deixava-os para o cão de pelo negro e luzídio. O cão aproveitava roía bem os ossos. Por um lado aproveitava bem o que de comestível nos ossos. Por outro dava-lhe prazer cravar ali os dentes. Fazia-o como um jogo. Procurava algo que sabia não encontrar e encontrava satisfação nisso. Muitas vezes deixava os ossos do lado e vinha estender-se na calçada ou sob as mesas da esplanada. Ou noutros lugares, que às vezes preferia.
Um dia o café não abriu. Fechou às nove, como sempre, mas o dono não apareceu no dia seguinte. Nem no dia a seguir a esse. Nem no dia a seguir. Pelo menos que o cão visse. Na porta um papel branco. Escrito com letras maiúsculas saídas de uma caneta de feltro azul, Para trespasse.
Nem no dia a seguir. E o cão decidiu tentar a sorte na rua acima. Na rua acima não havia nenhum café. Por isso o cão decidiu esperar por aquilo que não sabia o que era em frente a uma porta de entrada de um prédio. O cão não gostava disso porque pensava As portas de entrada dos prédios são todas iguais. Ou talvez não pensasse. Mas aquela não era.
O homem não tinha mais lágrimas para chorar. Quando choramos há sempre um momento em que paramos. E em que a realidade nos aparece. E parece-nos tão dura que muitas pessoas a questionam. Não esta. Esta nunca a questionava. Ele levantou-se. Depois afagou o pêlo do cão.

O cão estava morto. O homem não sabia o que se faz com um cão morto. O homem nunca se lembrara de pensar que o cão podia morrer. O homem preferia não o fazer.
Ele pensou Tenho que ir trabalhar. Já passava meia hora da hora a que ele costumava saír de casa. Essa era a oitava hora, e agora eram oito e meia. Ele estava surpreendido por descobrir o quão pouco importante isso era. Decidiu não tomar o pequeno almoço. Nem tomar um duche. Nem fazer a barba, como todas as manhãs. Vestiu-se apenas e depois saiu e esperou o autocarro.
O homem entrou no autocarro. Olhou o condutor. O condutor tinha o olhar fixo nos passageiros que entravam. Mas o condutor não os olhava. Olhava mais além, como um ponto indefenido. O homem escolheu um lugar ao acaso. A única condicionante era que ficasse junto de uma janela pela qual visse os cães spreguiçarem-se na rua. Os prédios pareciam mover-se, o mundo parecia andar para trás. Mas o homem sabia que era o autocarro que se movia e não tinha muita esperança de estar errado. O autocarro parou novamente.
Pela janela o homem viu um cão rafeiro perder-se na esquina da rua. Viu uma lata de refrigerante vazia. Um saco de plástico esvoaçante e amarelo. A parede clara mas suja de um prédio. Uma paragem de autocarro. E depois um corpo humano estendido no chão. O homem amava o cão que desaparecera atrás de uma esquina. Mas o homem não amava o homem que estava estendido no chão. O homem esperou que o condutor fizesse a chamada. Deve ter ligado para a ambulância, pensou. Depois esperou mais um pouco. O autocarro estava parado há alguns minuto. Disse,
– Importa-se de pôr o autocarro a andar?
Alguns passageiros concordavam que não havia razão para delongas e não queriam chegar atrasados. Outros não concordavam. Porque o homem podia ter algo de grave. Ou porque tinham curiosidade. Ao homem que olhava cães pela janela do autocarro isso não importava. Ele só queria que alguém ouvisse a raiva, a impotência na sua voz enquanto dizia
– Importa-se de pôr o autocarro a andar?
Havia quem pensasse que ele era egoísta. Era verdade. As pessoas que amam com aquela urgência de quem pode amar para sempre mas quer amar tudo naquele momento... As pessoas que amam são muitas vezes muíto egoístas.

quinta-feira, novembro 3

Coisas Simples 2

Eram oito e trinta e dois da manhã quando um homem chegou à central de autocarros. Vestia uma gabardina de um verde esmaecido. A gabardina estava seca. A marca da sola dos seus sapatos aparecia em relevo na terra húmida. Choveu ontem à noite, pensou. A água acumulava-se em poças de água dispersas pelo largo espaço de alcatrão. Era óbvio que tinha chovido ontem à noite. Mas a ele não lhe importava se a conclusão era óbvia.

Antes de entrar no veículo olhou para a direita. Inspirou o ar fresco matinal. Sentia-se nervoso. Mas aquele momento era mais um entre todos os momentos dos últimos treze anos. Sentou-se no lugar de condutor. Abraçou com as duas mãos o largo volante. Depois pôs o autocarro a trabalhar. Olhou pelo espelho retrovisor. Com a mão direita pôs a alavanca das mudanças em marcha atrás. Manipulava a alavanca com gestos mecânicos. Meteu a primeira. O condutor tinha quase a certeza que podia fazer o percurso de olhos vendados. Fazia rodar o volante por entre as mãos sem pensar se virava à esquerda ou à direita.

A primeira paragem. As portas abriram-se com um som de alívio. As pessoas que esperavam na paragem entraram. O condutor gostava de ver entrar as pessoas. Não era como se olhasse cada pessoa nos olhos. Não era como se lhes decorasse as rugas na testa ou os contornos dos lábios ou a forma do nariz. Cada pessoa é em si própria uma pessoa. Muitas pessoas é, no seu todo, outra pessoa. Ou talvez seja uma palavra qualquer. Apenas uma palavra qualquer dita por uma boca qualquer para ser escutada por um ouvido qualquer. Ou para se perder num vazio qualquer. O condutor não pensava nisso. O condutor apenas gostava de ver entrar as pessoas. Um condutor deve ter pensamentos concretos. Esperar que todos os passageiros entrem. Fechar as portas. Arrancar.

A segunda paragem. O condutor pressionou o botão. As portas abriram-se com um suspiro profundo. O condutor gostava de ver entrar as pessoas. Mas fazia-o com um olhar melancólico. Ele olhava mais além. Num ponto indefinido. Quando voltou a fechar as portas pensou Está a chover. Accionou os limpa pára-brisas.

A terceira paragem. As portas abriram-se com um som taciturno. O condutor olhou para a sua direita. Atrás das pessoas que entravam, um homem. As pálpebras do homem cerraram-se em silêncio. Depois o seu corpo caiu sobre si mesmo. No meio da calçada. O condutor procurou o telemóvel. Ligou o cento e doze. Depois olhou os passageiros pelo espelho. Depois olhou novamente o homem caído no chão. Era a primeira vez em treze anos que acontecia algo assim. É a primeira vez em treze anos que me acontece algo assim. O homem caído parecia ter uns setenta anos. Os cabelos eram completamente brancos. Os seus óculos largos de haste castanha e lentes rectangulares tinham voado trezentos sessenta e seis centímetros adiante. As unhas das mãos eram curtas demais. As mãos estavam cravadas de rugas e veias. Vestia uma camisa com linhas de tons pastel intersectando-se em quadrados.

O condutor começou a aperceber-se de um rumor de protesto. Atrás de si. Sentiu todo o corpo aquecer. As suas faces ruboresceram. Alguém disse, numa voz rancorosa,
– Importa-se de pôr o autocarro a andar?,
os outros protestavam num múrmurio. O condutor esperou, com as faces ruborescidas. Nove minutos e trinta e seis segundos. O gutural som da sirene da ambulância chegava urgente aos ouvidos do condutor. Nove minutos e quarenta e sete segundos. A luz azul da sirene apareceu no espelho retrovisor. Depois arrancou.

Sabia que um seu colega estaria a conduzir outro autocarro brevemente para aquela mesma paragem. Sabia que na quarta paragem outras pessoas o esperavam, ansiosas e agitadas. Não sabia porque não tinha arrancado com o autocarro. Parecia-lhe óbvio. Tão óbvio quanto impossível de explicar. O óbvio é uma coisa complicada. Penso nisso mais tarde.