segunda-feira, fevereiro 28

Amar

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui...além...
mais este e aquele, o outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!
render ou desprender? É mal? É bem?
Quem disse que se pode amar alguém
durante a vida inteira é porque mente.

uma primavera em cada vida:
é preciso cantá-la assim florida,
pois se Deus nos deu voz foi prá cantar

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
que seja minha noite uma alvorada,
que me saiba perder...p'ra me encontrar...

Florbela Espanca

Entrei no café com um rio na algibeira

Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
a melodia sem contorno
deste acaso de existir -
onde só procuro a Beleza
para me iludir dum destino.

José Gomes Ferreira

A minha aldeia

Minha aldeia é todo o mundo.
Todo o mundo me pertence.
Aqui me encontro e confundo
com gente de todo o mundo
que a todo o mundo pertence.

Bate o sol na minha aldeia
com várias inclinações.
Ângulo novo, nova ideia;
outros graus, outras razões.
Que os homens da minha aldeia
são centenas de milhões.

Os homens da minha aldeia
divergem por natureza.
O mesmo sonho os separa,
a mesma fria certeza
os afasta e desampara,
rumorejante seara
onde se odeia em beleza.

Os homens da minha aldeia
formigam raivosamente
com os pés colados ao chão.
Nessa prisão permanente
cada qual é seu irmão.
Valência de fora e dentro
ligam tudo ao mesmo centro
numa inquebrável cadeia.
Longas raízes que imergem,
todos os homens convergem
no centro da minha aldeia.

António Gedeão

Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Adresen

quinta-feira, fevereiro 24

A noite é silenciosa

A noite é silenciosa, "e fez Deus separação entre a luz e as trevas"; a noite é silenciosa e nela tudo parece relativo. Crescem as sombras, os temores, os amores, sob a luz pálida do luar. Os caminhos parecem ganhar um destino, subitamente. Tudo é cheio dos nossos múltiplos eus que nos transbordam e ganham presença no que não é dito. De repente os nossos piores receios e os nossos mais profundo desejos tomam uma forma misteriosa e que nos é supeiror. Ficamos ali, sós, cogitando sobre tudo o que é a vida e a morte é - ou melhor: sobre tudo que é a vida e sobre tudo o que não é.
fora, por trás destas paredes, frias e alvas, esconde-se um mundo inteiro, uma série infinita de rostos, rostos, e por trás desses rostos há pessoas que pensam e estão sós como nós - como eu, que pronome mais solitário. Apagamos - apago a luz e deito-me e inundo-me de um nada que é muito do que o nada é. E durmo sob a noite;

A noite é silenciosa.

terça-feira, fevereiro 22

Os versos

Em cima da mesa está uma vela - vê-la? A cera é de um encarnado vivo, a cor do sangue, gemendo e derretendo sob o calor da chama. Tem cuidado, não vá um desses longos suspiros apagar a vela; não pressiones o pavio entre os dedos nem sopres deliberadamente, porque esta vela quer-se acesa, como em vigília permanente. Não olhes com esses olhos, o lento marchar do fogo não agonia, é belo. Olha outra vez - vês?

A chama é pequena e amarela e alumia um poema, mas de uma forma singularmente frágil, porque as letras e as palavras se perdem na brancura da folha de papel. O oxigénio é consumido e a cera vermelha derrete em pequenas gotículas que escorregam lânguidamente com o vagar de quem toda a noite; lá fora a abóboda celeste é novamente um tecto infinito para olhares contemplativos.

No fim, num daqueles fins das histórias de encatar,
"e viveram felizes
para sempre"
a vela doura e ilumina dois versos do poema, a última, em que culminam momentos e sentimentos num grito de extâse. Lê-os, lê os versos:
"itmaybelovemaybehate,
youaretheonewhoknows ."

quarta-feira, fevereiro 16

Aquele Inverno

Garantiam-me que o silêncio gélido da manhã um dia passaria, que melhores dias viriam, que as nuvens eventualmente se dissipariam, que a chuva pararia de cair, mas a verdade é que aquelas manhãs eram sempre iguais, assim, escrevendo no vidro embaciado da janela mensagens de sentido oculto até para mim. No fundo, nem eu sabia se estava preparado para algo diferente, para um sorriso, ou sequer para um ligeiro sentimento de alegria. Naquele marasmo em que me tinha enfiado tudo era igual e ínsipido, e qualquer outro aroma era passível de me chocar.

Escolhia sempre o mesmo lugar no mesmo autocarro, que tomava todos os dias; às vezes sorria, mas fingia não sorrir, só para não deixar as outras pessoas desalentadas
– Lá vai alguém que sorri, quem me dera poder sorrir assim,
e acabava por me habituar a uma tristeza que não me pertencia a mim mas aos outros passageiros, aqueles seres tristes de semblante carregado, escondendo a rotina por trás dos jornais tablóides.

Um dia vi-a, pela janela, que, excepcionalmente, não estava embaciada. Foi um momento fugaz, desapareceu, o autocarro virou a esquina, mas chegou para me fazer sorrir, o que nitidamente perturbou grande parte da minha vizinhança – não suportavam o mais leve rumor de felicidade que destoasse naquele silêncio pétreo.

Apesar de tudo, nunca ninguém chorou naquele autocarro, tenho a certeza, provavelmente porque ninguém tinha nada para chorar, só aquele infinito sentimento de que está tudo na mesma – inevitavelmente e à falta de gestos que mudassem esse estado, estava realmente tudo igual.

Naquele dia o autocarro estava prestes a arrancar, eu sentado no mesmo lugar de sempre, e as expressões faciais como sempre fechadas, sérias, impávidas e solitárias. Mas ela entrou no autocarro. Sentou-se à minha frente, e sorriu. Indubitavelmente, aquele gesto irritou todos os restantes passageiros.

– Como se atreve?
era a pergunta congelada nas bocas eternamente fechadas de todos eles. Eu, saturado daquele ar moribundo que possuía por complacência, olhei-a nos olhos e sorri também. Foi um sorriso tímido, e sei que ela reparou nisso. Já perdera o hábito, e era-me díficil atravessar o constrangimento de sorrir naquele autocarro.


– Não fazes isso há muito tempo, hã?
– Não.


Um último olhar, pesado e invejoso, procurou as minhas costas, enquanto eu abandonava o autocarro, de uma vez por todas. Um dia ou outro, tinha que abandonar aquele autocarro porque, decididamente, o Inverno não é para mim. Deixei no vidro embaciado um poema, um poema que não sabia escrever, e ela ficou abandonada áquelas palavras mudas de passageiros taciturnos que cobiçavam o seu cândido e ingénuo sorriso. Correram no vento boatos que a negra expressão da tragédia mundana fez desvanecer um dia esse seu sorriso, mas tenho esperança, para bem deste mundo, que não sejam mais que boatos correndo no vento.

esSAY about life

beLIeVE the world
Still has somethING
to SHOW you;
BElieve there is a flower,
a red, a YELLow, a blue flower
blosSoming in the end of the strEEt.


if you think you're alone,
look around.

terça-feira, fevereiro 8

A quiromante

O vento sopra baixinho as melodias com que a minha mãe me costumava serenar o sono. As montanhas pálidas quase se desfazem no céu de um azul muito claro, rasgado pelo voo altivo de um pássaro negro. É um mau presságio. Sinto no ar o cheiro aziago da morte misturando-se com o odor doce das clementinas
– Olha as clementinas boas, o saco cheio a um euro, um euro só,
apregoadas no outro lado da rua. Não é a primeira vez que tenho pressentimentos nefastos, por isso cruzo os braços e neles descanso a cabeça, como que num gesto de submissão perante a fatalidade do destino.

Fico ali, parada, observando os espíritos transeuntes que passeiam no quotidiano. Remexendo num contentor, um sem-abrigo, com a face embrutecida pela vida, os dedos grossos remexendo o lixo dos outros, sem esperanças, sem vontades, como se apenas um desejo último de sobrevivência o mantivesse vivo; passa ao lado, absorta, uma mulher, com um ar confiante e introspectivo, um leve sorriso despontando nos seus lábios de tempos a tempos; depois um outro homem, envergando uma gabardina ocre, cabisbaixo, olhando o chão que pisa, derrotado; e a figura oposta, saindo da estação de metro, com um ar plenamente feliz, o rosto iluminado, quase pulando de alegria, um rapaz novo – é díficil adivinhar o que de tão bom lhe sucedeu, se ganhou a lotaria, se ganhou no amor, se ganhou ao terror de si mesmo, enfim, quem saberá, a alegria é tão mais insondável e misteriosa do que a tristeza...

Vejo, com os olhos. Um homem, ligeiramente curvado sobre si mesmo, olha tudo à sua volta desconfiado, como se tivesse receio de ser reconhecido a caminhar na minha direcção. Veste um fato impecável, e usa uma gravata azul clara com riscas brancas. Talvez tenha vindo ou talvez vá a uma entrevista de emprego. Conheço-o; já cá vieram outros como ele. Tentou o psiquiatra, mas não resultou; os amigos não o conseguiram recompor; a mulher talvez tenha até pedido o divórcio; por fim, goradas todas as tentativas, todas as hipóteses automáticas, todas as formas racionais de abordar o assunto, estou cá eu.

– Porque não experimentar?, ter-se-á ele perguntado, Porque não? Pior não ficará, não me custa tentar.

E ali vem ele, quase fazendo pouco da sua própria desgraça, experimentando ainda alguma relutância em me consultar. Mas, por fim, abeira-se de mim, cumprimenta-me educadamente – mantendo a cabeça, erguida, continua a despistar possíveis testemunhas –, pede-me ajuda.

Peço-lhe a mão e ele estende-ma. A minha visão carrega já o peso do tempo, preciso de óculos para observar as linhas que se intersectam. A quiromancia é uma ciência milenar; em mim, pelo uso e pela prática, é um instinto. Foi a minha mãe que me ensinou a arte, como a mãe dela a ensinara a ela.

Peço-lhe a mão e ele estende-ma. Através das lentes, leio: a linha da Cabeça, a linha do Coração, a linha da Sorte, a linha da Saúde. (Há qualquer coisa de profundamente atraente em intrometer-nos na vida alheia lendo-a numa mão.) A linha da Vida.

Percebi na pupila do homem que ele reparara: a minha cara tornava-se pálida, os meus olhos arregalavam-se, a minha expressão era, toda ela, tomada pelo terror. Gostava de lhe dizer, Eu não sei, eu não vejo nada, mas quando alguém como eu diz isso é tomado por uma fraude. Mas se dissermos algo abstracto, algo que tenha uma enorme probabilidade de ser real, apesar de nada nos indicar que seja, então acreditam-nos. De momento, porém, o meu problema não é não ler nada na palma desta mão, antes ver nela demasiado bem. Domino-me, recomponho-me. As coisas vão começar a correr melhor, digo-lhe, A sua mulher ainda o ama, e arranjará emprego em breve. Ele suspeita, evidentemente. Está na sua natureza. Para mais, tem razão, eu não lhe digo a verdade. Eu sei-a mas não lha digo.

Recuso-lhe a nota que ele me entrega. Sei que é o mínimo que posso fazer. Ele insiste mais uma vez, eu nego-lhe uma vez mais. Então, sempre com o seu ar desconfiado, afasta-se, a passos largos.

Atravessa a estrada, olhando sempre em frente. Um autocarro à direita. O poder da adivinhação é uma coisa terrível.

sexta-feira, fevereiro 4

O voto nulo

Entrou na escola de cabeça baixa, entregado a pensamentos dúbios. Já não se lembrava de a escola alguma vez ter servido outro propósito que não o cumprimento do dever cívico. Depois ergueu a cabeça e olhou a parede em frente, de um cor-de-rosa esmorecido. A escola parecia-lhe sempre um lugar desolado, talvez porque sem os miúdos. Talvez faltem ali as camisolas coloridas e alegres, um jogo de bola, uma corrida, talvez. Sorriu, e olhou o chão alcatroado novamente. Imaginou a escola repleta de crianças, ali e agora, naquela tarde de eleições.

O rosto cerrou-se quando entrou na sala, e se apresentou na mesa de voto; e depois, quando se aproximou da urna. Ao lado esquerdo, ao lado direito, em frente, todos os lados eram-lhe vedados. Com o boletim de voto em frente, vazio, esperando a fricção da caneta com o papel, sentiu um vazio, um aperto, como se, de súbito, se descobrisse distante daquele jogo de silêncio e ruído, que culminava, finalmente, ali, naquele acto. Lá fora o arco-íris, imaginava, um céu de fogo, nuvens de formas dúbias, rapazes correndo, raparigas brincando, um espectáculo multicolor, personagens de histórias de encantar de visita à escola, agora arranjada e bonita, nos canteiros florindo flores vistosas que emanam cheiros deliciosos, no jardim um banco, um recanto apetecível, nas janelas desenhos. E desenhou isso naquele papel diminuto, com as siglas alinhadas numa coluna, os respectivos quadradinhos diante, munindo-se para a tarefa de não mais do que aquela esferográfica negra. Que desplante, chamar-lhe voto nulo!... O que é nulo afinal?

Resoluto, colocou a sua obra na urna, escura e democrática, na sua pose metálica, encerrando os augúrios dos votantes, e, agora, também os sonhos de menino. Naquela noite ainda, sob o luar radiante, mãos atarefadas, contando os votos, mãos exaustas, encararam com desprezo este boletim, nem reparam – um arco-íris, o capuchinho vermelho, desenhos nas janelas – nem reparam na singela e ingénua beleza do desenho, e ele perde-se numa pilha de outros papéis. Valor estatístico: nulo.