sábado, janeiro 29

Carpe Diem

Ao príncipio um ano vai ser muito grande, mas no fim foi sempre muito pequeno.

Seize the day,
aproveita o dia,
ele não volta mais.

A manhã acorda enevoada,

(dom Sebastião, esse
aproveitassem os seus dias, esse
não volta mais)

envolta em segredos e mistérios, mistificações do real. Não, para quem quer o caminho é sempre em frente, pelas ruelas mais escondidas, pelos caminhos mais sinuosos, para quem quer, há que arriscar, seguir o instinto mal iluminado, escondido nas entranhas perversas do tempo.

No fundo há um só caminho. Aquele.

Podes segui-lo,
podes não o seguir;
mas se escolheres não o seguir,
não te queixes de não o teres seguido,
porque aquele era o único caminho.

Aquele é o único caminho livre de ócio. O único livre da rotina. No fim desse caminho jaz o sabor último, o aroma único do fim dos caminhos. Mas ao príncipio é muito grande, é um caminho que sobe uma encosta; mas, ainda assim, por mais díficil de superar que pareça, omisso na manhã enevoada, nunca deixa de ser o único caminho.

quinta-feira, janeiro 27

Auschwitz - "O trabalho liberta"

Acordou, com a testa húmida. Os olhos, frios, inundados de um terror que há sessenta anos padecia de insónias fixaram a parede branca escura nas sombras do quarto. Tentou respirar normalmente, recuperar um batimento cardíaco regular. Esforçou-se por não ver os homens magros, farrapos de homens, que sob o olhar atroz de alguns soldados alemães iam e vinham, e trabalhavam no que mais ninguém queria trabalhar. Não queria mais olhar os velhos que arrastavam o seu corpo, as suas histórias de anciãos, para uma sala, que se enchia de gás tóxico e que ia desvanecendo os seus espíritos.

Mas, há sessenta anos, selaram aquele campo sujo de sangue, de ódio, de vidas humanas ceifadas sem direito e sem foice, que se mantinha sob o irónico lema "o trabalho liberta". O perdão é impossível. Deus talvez perdoe a todos, mas o homem tem limitações na sua capacidade de perdoar. Como todas as noites, acordou, com a testa húmida.

quem queira esquecer. Não esqueçam. O homem não tem que e não deve ter que aprender outra vez com sacríficio dos que inocentes, gritavam, urravam silêncios bem alto, silêncios que ninguém nunca escutava.

segunda-feira, janeiro 24

A discussão

Na janela vejo as silhuetas ganharem vida, a contra-luz. Vejo os seus gestos irados, em poses acusatórias ou de exagero. A raiva transcende-se. O seu aroma inconfundível espalha-se pelo ar, nós respira-mo-lo, revolta-nos também. A estrada está ainda húmida. Inevitavelmente uma das silhuetas desaparece. Nenhuma se apercebe de que espio os seus movimentos e os registo ciosamente, como movido pelo interesse de desvendar o homem.

Eu sei que, algures noutra sala, a silhueta está sentada, num qualquer sofá, e vai parecer muito sozinha, assim, no canto. A luz é demais, por isso ele apaga-a e a sua sombra de silhueta confunde-se com as sombras da sala e confunde-se também com o silêncio
(um silêncio incómodo, cheio de múrmurios de perguntas sem resposta, cheio de frases perdidas, de verdaades discutíveis mas tão necessárias)
que se esgota na noite lá fora, cá fora, onde eu observo. A silhueta dobra-se sobre si mesma, convencida da sua razão. Mas, da janela que eu vejo, outra silhueta dobra-se também sobre ela mesma, tão ou mais segura de possuir a verdade. É um paradoxo, e ambas as silhuetas sabem que só uma delas pode ter razão.

A noite arrefeceu.

No seu quarto, envolta em sombras e silêncio, a silhueta quer explodir. A raiva subverte os olhos que temos postos no mundo. Nessas alturas vemos o mundo de forma diferente, vê-mo-lo inconsequente, sem resultado, impossível, sem refúgio. Não vale a pena tentar escapar.

(estou a ver a silhueta, levantando-se da cadeira, saindo do quarto, batendo com a porta, saindo de casa, batendo com a parta, puxar de um cigarro, entra na noite fria, a porta fecha-se lentamente, acende o cigarro)

A silhueta está na noite, nesta noite, aqui fora. Está a tentar fugir. Mas não vale a pena. Por mais que siga por ruelas escondidas lá está a raiva, esperando-o ao virar da esquina; por mais que procure caminhos obscuros, lá está a culpa, sua sombra; por mais que desespere em becos sem saída, lá está a ira, muito evasiva nas justificações, indo ao seu encontro. O cigarro perde a sua chama e a silhueta permanece fechada em si própria. Acende outro cigarro.

(à janela agora, a silhueta, aquela a contra luz, já tem o jornal fechado sobre a mesinha de centro, e dorme agora um pesadelo, com a cabeça encostada no sofá)

Os cigarros sucedem-se, as horas sucedem-se, a sonolência dos sentidos turva já os pensamentos e a sua fuga permanece infrutífera. Sempre no mesmo silêncio, sempre a noite, cada vez mais gelada. Na próxima esquina, a casa.

(apaga o cigarro, sai da noite fria, a porta fecha-se lentamente, entra em casa, batendo com a porta, entra no quarto, acende a luz, deita-se na cama, estou a ver a silhueta, apaga a luz)

A silhueta pensa, absorta novamente no escuro e no silêncio. Está segura de si. Decide esperar. Na sala e no quarto, esperam, um pelo outro. É, talvez o mundo seja mesmo absurdo. Esperam um pelo outro mas nenhum deles poderá entregar-se, senão os dois ao mesmo tempo, porque o outro verá nisso uma fraqueza. Demais a mais a silhueta que, à janela, a contra luz, dormita sobre as preocupações, jamais fraquejará. E por isso esperam os dois. A luz do quarto apaga-se, acende-se, apaga-se outra vez; eu vejo a luz da janela, apagar-se, acender-se, apagar-se novamente. E assim se remexem as luzes na sua cadência própria, e assim remoem as silhuetas o seu rancor.

quinta-feira, janeiro 20

De olhos bem fechados

“Mais um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade”
Daniel Filipe in “A invenção do amor”


De olhos bem fechados absorvo os odores, os sabores, as luzes da cidade. De olhos bem fechados a cidade perde a sua dura nudez, a miséria esconde-se em longos silêncios, becos sem saída, e ganha uma forma poética que nunca se atreve a assumir sob a força de uns olhos abertos.

De olhos bem fechados os meus sentidos captam almas que eu nem sonhava existirem na cidade. Captam palavras perdidas caminhando ruas, selando negócios, começando e terminando histórias de amor, captam a essência da cidade, aquilo que, filtrados os ódios milimetricamente calculados ou as amizades estrategicamente pensadas, sobra como fulcral.

De olhos bem fechados, vejo os sons que ouço virarem a esquina e esconderem-se de olhares estranhos,
- Sim...
e a resposta, vendo que ninguém os olha e sem suspeitar que eu os vejo ouvindo e sentindo, deixa-se surpreender,
- Sim?...

Afinal é uma só a palavra que dobra a esquina - mas duas as bocas que a murmuram, duas as bocas que se encostam, que cantam sons inaudíveis sob o luar, sob o crescente canto de anjos no céu. E no beijo se embaraçam as almas uma na outra, e cresce o amor e o canto dos anjos.

«I see friends
shaking hands,
saying “How do you do?”»

Num automóvel apressado, músicas novas atropelam as antigas. As letras, vazias pelo muito que foram escutadas, pelo muito que foram vendidas, parecem de súbito sinceras e credíveis, vistas pelos meus bem fechados olhos.

«But what they’re
really sayn’ is
I love you»

As luzes da cidade, as luzes dos faróis dos carros, as luzes das janelas dos prédios, as luzes dos candeeiros que alumiam a estrada, a luz dos placards publicitários, as luzes da cidade, todas, dançam alegremente até se perderem no escuro dos meus olhos bem fechados. Iluminam o cantar dos anjos e com ele se perdem no horizonte escuro.

O beijo termina. Outro começa, noutra cidade, com outras luzes, outros sons, outros sabores, outros odores. E também esse terminará. Numa qualquer rua escura, escondida, olhos fechados, olhos abertos, lábios colados, lábios selados, em qualquer rua iluminada, aberta, o Mas este beijo, este, desta cidade, tenho a certeza que é só o príncipio. Tenho a certeza de que mais sins se seguem,
(- Sim, aceito.)
tenho a certeza de que mais beijos se darão, tenho a certeza de que ele lhe apertará a mão numa cama de hospital, tenho a certeza de que ela o amparará na queda e o consolará na tristeza, tenho a certeza de que o seu amor será desses que se pensa eternos porque a vida se cansa antes do sentimento.

De olhos bem fechados posso ter essa certeza, porque de olhos bem fechados se esconde de mim a crueldade fria da cidade, e então resta apenas essa certeza animal de que a alma é dominada pelo sentimento. A minha certeza tem a fraqueza de pensar que se abrir os olhos verei o amor já morto, e por uma vez, por esta única vez, estou determinado a não deixar que isso E por isso me deixo ficar assim. De olhos bem fechados.

quarta-feira, janeiro 19

i suppose

Sentado numa mesa de um café de perna traçada, um jovem olhava o céu com um ar distante. Aproximava-se, pela calçada, um velho muito marcado. Era um velho muito curvado e gasto, a testa cravada de sortes e azares e tempos e lugares. Todo o seu rosto, de resto, denunciava o cansaço de uma viagem mais longa do que se poderia descrever em poucas linhas: sob os olhos, pequenos e fechados, tinha grandes papos, na cabeça repousavam desgrenhados os cabelos brancos, a boca, pequena entre a barba, estava murcha e selada. Caminhava com um passo manco em direcção ao café, trazendo flores na cabeça.

Abeirou-se do jovem e com um sorriso manso brotando nos seus lábios finos e secos, ofereceu uma flor,
les roses
les bluets,
tirando do cesto uma rosa, e segurando-a, com os seus dedos magros, em frente à cara do jovem. O jovem não parecia, de súbito, tão distante. Olhou o velho com um sorriso terno. Na cadeira ao lado uma mulher segreda-lhe umas palavras ao ouvido com uma voz sussurada.

Sorriem todos, o velho, tão velho, lembra o passado, o jovem, sorrindo, é presente, e a senhora,
whose name is Afterwards,
é o futuro. O velho curvado sobre o jovem, e o jovem deleitando-se a ouvir as palavras da mulher. No ar misturam-se os aromas: há o perfume das flores, há o perfume das rosas, há o perfume da mulher, há o perfume do café quente sobre a mesa. A senhora quer uma flor, a senhora gosta de flores, e diz baixo ao
ouvido do jovem, eu quero uma flor, e então o jovem, com uma nota presa entre o indicador e o polegar, compra ao velho a rosa e coloca-a nos cabelos negros da mulher, que resplandece agora, que vive agora.

poema de e.e. cummings

suppose
Life is an old man carrying flowers on his head.

young death sits in a café
smiling, a piece of money held between
his thum and first finger

(i say “will he buy flowers” to you
and “Death is young
life wears velour trousers
life totters, life has a beard” i

say to you who are silent. – “Do you see
Life? He is there and here,
or that, or this
or nothing or an old man 3 thirds
asleep, on his head
flowers, always crying
to nobody something about les
roses
les bluets
yes,
will He buy?
Les belles bottes – oh hear
, pas chéres”)

and my love slowly answered I think so. But
I think I see someone else

there is a lady, whose name is Afterwards
she is sitting beside young death, is slender;
likes flowers.

e.e. cummings

quinta-feira, janeiro 13

Palavras sem sentido

Apetece-me correr
num desses caminhos de pedra
infinitos, ladeados por muros
onde escorregam musgos e líquenes,
espreguiçando-se ao sol;
até me perder no algo
que me elucide sobre
mim,
e que me diga porquê,
porque gosto de ouvir
palavras sem sentido
debruadas pelo fino tacto
de uns quaisqueres lábios
transeuntes.

a saudade desfrutava-se a si própria num banco de jardim, à sombra da serenidade de árvores de saber centenário; e enquanto isso, preso no meio de nada (bem parado como a estátua que erguia a sua monumental figura de mármore bem no centro do espaço), florindo no espectáculo de cores, de papoilas, de rosas, de camélias, enquanto isso, palavras, palavras e palavras brotavam-lhe da boca, palavras solitárias remetidas para a saudade, palavras que, ele sabia, ele sabe, têm significado,
- Ora ouve-as outra vez.

terça-feira, janeiro 11

O passado não mora mais aqui

Esta é uma noite antiga. É aquela noite. Lembras-te? Pois eu lembro-me; lembro-me de todos os aromas, de todos os canteiros floridos, de todas as cores. Lembro-me de todos os recantos, lembro-me das casas brancas refulgindo com o brilho etéreo do luar, lembro-me do caminho ermo, escuro e sinuoso que não ia dar a lado algum. Lembro-me do uivo dos lobos na montanha...

Não havia lobos na montanha. Eu não me lembro do uivo dos lobos; mas lembro-me das ladainhas do vento. Não era um vento forte; era um desses que surge da inspiração voando numa noite de Verão.

Não, os lobos não pertencem a essa paisagem. E o vento não era forte, não. E houve um instante até, em que todos os movimentos cessaram. Não sobrou no ar nem o mais súbtil dos sopros outonais. Os olhos rolavam na tentativa de explicar o seu espanto. Lembras-te?

Eu lembro-me, sim. E foi então que um pássaro cortou o céu em duas metades, e toda a vila estremeceu. No cenário bucólico, duas mãos humanas, pelo mero anseio de mudança, preparavam-se para quebrar a monotonia da forma mais violenta. Todos pressentiram um crime quando a melancolia da linha do horizonte se quebrou.

Sim. E então eu corri e afastei o cano frio da arma. Os tiros abruptos perderam-se no ar e não feriram ninguém. A arma esgotou-se, a crueldade esgotou-se naquela noite, ali. Estranho. Não me lembro das mãos que seguravam a arma.

Não estranhes. Fui eu que te pedi para esqueceres. Não te lembras? Era esta a arma. Era este o cano frio que afastaste e selaste. Mas hoje é uma daquelas noites. Será que vale a pena, a vida?

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Por um momento, o meu corpo arrefeceu gravemente. Ficou hirto. Eu lembro-me sim. Tudo quanto consigo agora é beber-lhe as amargas palavras, mas a minha boca esboça sons. Eu já não tenho mãos de poeta. Finalmente o som dos tiros, soam secamente no silêncio suspenso. Sãos sons ensurdecedores, que ficam a ecoar na minha cabeça como uma memória que eu quero esquecer. A minha boca esboça sons, mas de forma inútil: está completamente seca. De súbito apercebo-me de que todos os corações continuam a bater na mesma cadência. Era o álbum de fotografias que tinha sido desfeito. A minha boca está completamente seca. É a dele que fala.

O passado não mora mais aqui. Talvez o caminho solitário, talvez a vila reluzindo sob a lua cheia, talvez as flores – o passado não mora mais aqui.

domingo, janeiro 9

Entre muros

São sete da manhã, já a seguir as notícias das sete com. Olhos preguiçosos – os meus? – olham o penoso despertar do mundo, um acordar taciturno e obscuro. Mas que razões tenho eu, temos nós, para nos deixarmos melancolicamente abandonados a sentimentos que caminham marginais pela vida, sombrios? Nós estamos deste lado do muro. Que sabemos nós? Que podemos saber. Os que constroem os muros sabem que o esquecimento não cura nenhum mal; apenas o esquece. Há sempre os que gritam. Mas enrouquecem antes que os que ouvem deixem de se fingir surdos.
Heródes, o rei brutal, odiado por quase todos (ao que reza a história), decidiu criar um templo monumental que servisse as necessidades de oração do povo judaico. A sua morte chegou antes da conclusão do templo. Então, em 70 d.C. o imperador romano Tito, com o objectivo de controlar a rebeldia dos judeus face ao seu poder intrasingente, decidiu-se a destruir brutalmente o templo do brutal rei; e como que deixando o aviso, poupou um pequeno pedaço da muralha exterior. Esse pedaço de templo foi assim convertido num simples muro – o das lamentações –, passou a ser o local de adoração dos judeus nessa Jerusalém que é o símbolo do mundo: naquela cidade convergem as três maiores religiões que guardam entre si eternos rancores, sob a égide de um único Deus, Deus em que todos acreditam, Aquele que prega mensagens de paz e amor entre os homens. Que hipocrisia pretextar assim ódios, mortes, guerras. Que hipocrisia, muros!
Mesmo a Europa, onde jaz o berço da democracia, onde se pronunciaram pela primeira vez valores de liberdade, onde se clamou civilização, mesmo a anciã Europa atravessou periodos sombrios, quer na escuridão dos bunkers, quer depois, quando se dividiu a cidade de Berlim por um muro, quando Kruschov decidiu demarcar bem de que lado estava na política. Mas esse era um muro maior que si próprio. O muro extrapolou-se para uma perspectiva mundial, e dividiu duas facções com muitas bocas mas sem quaisquer ouvidos. Os muros têm ouvidos mas não têm bocas. Porém esse facto em nada compensa tudo o resto, porque as bocas sem ouvidos de nada servem, e os ouvidos sem bocas são desnecessários. Separados por escassos metros, as bocas de uns não chegavam aos ouvidos de outros – e eram os olhos que choravam. Em 1989 finalmente há a importação de bocas e ouvidos e o muro deixa de ecoar as vozes de esperança, inúteis.
Quem, utopicamente, imaginou que todos aí entenderiam que os muros não servem de nada? Quem? São oito horas da manhã, já a seguir as notícias das oito com. Israel decidiu-se a aprisionar a Palestina entre os seus muros de cimento, com vedações electrificadas, com lugar à vigilância permanente nos dois lados da fronteira. É o novo muro da vergonha entre Israel e Faixa de Gaza. Na rádio, hoje, às oito, transmissão em directo de todas as hipocrisias que podem ser escritas no muro, enquanto duas crianças jogam fazem do muro baliza para um jogo de bola.

sexta-feira, janeiro 7

Um lápis azul não pinta a cor vermelha

Chama-se o réu a testemunhar;
Declara-se culpado dos crimes
Que lhe são imputados?

Um silêncio pesado deformava a cara do advogado de defesa, pesado na sua silhueta bojuda. O advogado de acusação ajeitava a gravata, preparando as perguntas, com um sorriso confiante,

arrogante;

o cabelo que lhe sobrava ajeitava-se na forma de uma coroa de louros.As mãos, ocultas atrás das costas, remoiam-se em gestos nervosos que eram muito seus nestas ocasiões. A primeira pergunta começou num tom rouco, grave e baixo, que depressa se tornou alto, potente e aterrador.

É verdade que defende,
É verdade que apregoa,
É verdade que crê tem fé na...

Nesta altura o advogado estremeceu, vacilou. À sua face parecia ter deixado de chegar o ar. Virou a cabeça para o excelentíssimo senhor juiz, e, sem uma palavra, utilizando apenas os olhos arregalados, pediu-lhe autorização para dizer o que se anunciava,

liberdade?

O réu, impenetrável, respondeu
Vossa Excelência vai-me desculpar, mas não percebi bem,
e a face do advogado fechou-se numa rubra expressão irada e repetiu num,

É verdade que defende
A liberdade?

O réu fez-se ouvir:

É o que eu sou
E o que você não tem.

O sorriso do advogado domou toda a sua face num gesto arrogante, e declarou que por si tudo tinha terminado naquela pergunta. Lançou ao excelentíssimo senhor juiz um olhar cúmplice, mas o magistrado mantia-se impávido. Então o juiz setenciou,

Declaro o réu culpado;
Condeno-o à forca!

E então naquele dia o poema foi levado para ser enforcado. Subiu ao cadafalso sem medos e deixou que no segundo fatídico a corda se lhe apertasse sobre os versos e o esganasse. Seria declarado morto, mas do silêncio brutal brotaram palavras de poema que clamavam

Liberdade!
Liberdade!
Liberdade!

E os guardas atónitos, esgazeados, deixaram em todo o estabelecimento prisional ecoarem aquelas palavras e versos, soltos, livres. Tentavam agarrar os prisioneiros fugidios estendendo as mãos como garras, mas nelas não sobrava mais que ar.

No céu, de um azul lacinante, voava um pássaro muito branco, com as asas muito abertas, viajando num jeito harmonioso e fluído. E num repente desceu, quase a pique e fingiu cair ferida na terra castanha do jardim para que alguma criança desprevenida o levasse e tratasse.

terça-feira, janeiro 4

O sorriso

O cirurgião, de bisturi em punho, deu ínicio à operação. A sua equipa rodeava-o, atenta. A sala era, toda ela, um tremendo, brutal, silêncio. Se a experiência resultasse, seria um marco na história da estética mundial: um homem seco e arrogante teria sido adornado com um sorriso sincero, quase de criança. O paciente jazia na mesa de operações, anestesiado, prostrado, como nunca se ousaria mostrar perante qualquer outro; e se não fosse por desejar possuir um sorriso sincero, não se mostraria assim, frágil, aos olhos deste médico também. Na hora seguinte os médicos davam já por finda a sua obra. Sorriam entre si, e congratulavam-se pelo feito.
O operado, esse, ficou de descansar mais três dias na clínica; e na manhã do quarto dia pediu, antes da partida, silêncio ao médico cirurgião que chefiara a operação. Ele argumentava. Era um acontecimento ciêntífico de excepcional importância! Mas ele não pensava de forma alguma ceder, porque nunca cedera a ninguém que não ele próprio. O médico enfim, de garganta rouca, lá cumpriu a sua vontade. Porém o sovina, de olhar desconfiado por cima de um sorriso sincero, não dava crédito a nenhuma palavra, que era muito vivido no mundo das desilusões e, ao jeito de mordaça, colou na boca do doutor, com um gesto arrogante, uma nota de muitos dólares. O cirurgião levantou-a e com um ar desapontado pediu-lhe que ele ao menos lhe satisfazesse a curiosidade:
– Você nunca sorriu?


E ele, sem palavras, com os mesmos olhos de desprezo reluzindo na face, retirou do bolso do seu elegante e caro casaco uma carteira que desdobrou em frente da cara do seu interlocutor: e lá aparecia, claramente, um homem a sorrir.

domingo, janeiro 2

Não tens palavras?

Então, não tens palavras?

Vais ficar aí na soleira da porta à espera da lua, contando as estrelas no céu muito negro, escutando o som dos grilos no quintal, sons de uma noite bucólica, adormecida sobre si mesma? Que pouco interessa que não saibas o que dizes! Pois que o digas, porque é o que farás melhor. E nós beberemos as tuas palavras porque são belas, não porque queiram dizer alguma coisa; porque aqui, neste lugar recôndito, de tanta beleza que lhe perdemos a conta, nos esquecemos de achar todos os dias graça no orvalho ou na cor das flores ou nas serras em tons de aguarela. E nós beberemos as tuas palavras, não como água, mas como vinho.
Então, não tens nada a dizer?

Eu trago a guitarra para ouvir da tua voz tuas palavras. Se a minha guitarra de canta, era para que lhe contes as tuas palavras. Não contes como números, conta como palavras. Lembra-nos os castelos de fadas, tão pouco importa que eles sejam sonho, lembra-nos um olhar cândido, tão pouco importa que eles estejam extintos, lembra-nos uma cidade em silêncio, adorando-se, tão pouco importa que não a saibamos imaginar, lembra-nos a neve. Quero que me lembres a neve. Sim, hoje a neve. Vou buscar a guitarra, e tu lembras-me a neve.

Então não nos lembras nada?

Não te abandones a esse silêncio. Não quero mais silêncios. Os silêncios são para quem fala, para quem ouve, para quem se envolveu na delícia ou no trauma dos sons quotidianos. Mas aqui esses sons não chegam a boatos. Não, não quero mais silêncios. Não nos deixes em silêncio, porque eu não sei imaginar sem a tua voz. Vou buscar a guitarra, sim?