domingo, abril 16

Um livro aberto ao acaso

Ele soube que aquele tinha sido o maior erro da sua vida quando o marpassou a ser só mar, a areia só areia, o sol de fim de tarde só um sol morrendo na praia deserta. Não existiam nuvens no céu, e ainda era cedo para que nele brilhassem as estrelas.
Foi num daqueles dias de há muitos anos atrás, daqueles dias deinfância que nos vêm à memória com uma banda sonora melosa interpretada por uma orquestra de cordas, que Paulo viu a sua primeira poesia. Entrou na cozinha e viu o livro de setenta páginas esquecido no chão. Pegou-o com ambas as mãos, mãos pequenas como o corpo e como a idade. Abriu-o ao acaso e ainda hoje tem a certeza de que os livros de poesia foram escritos para serem abertos ao acaso.
Mas Paulo vivia então os seus primeiros anos, e ignorava ainda as potencialidades sonoras da letra escrita. Apaixonou-se sim foi pelo livro em si, pela forma das letras e pela disposição dos versos, pela textura do papel, pela capa dura, pela mancha amarela na página cinquenta e seis, produto de uma qualquer leitura negligente. Noutras camas deitavam-se meninos e meninas agarrados aos seus ursos depeluche, naquela dormia Paulo, abraçado ao seu livro de poesia.
Quando no primeiro ano de escola os colegas se albafetizavam com contos ilustrados de Christian Andersen que vinham no livro da escola, ele praticava lendo o livro de poesia que levava consigo para todo o lado. E lia as muitas palavras que não compreendia. E antes de inquirir da proveniência dos bebés Paulo perguntou, numa daquelas tardes em que a mãe o trazia da escola, Mãe, o que é o amor? E a mãe, que apenas estava preparada, e mal, para a pergunta da praxe, engasgou-se e olhou o céu, e a rua e os prédios e os automóveis estacionados em segunda fila e disse qualquer coisa sobre o amor ser uma semente que crescia e se tornava numa ave, que voava como as cegonhas e sonhavacom uma viagem a Paris.
Está claro que Paulo logo percebeu que o amor devia ser algo de mais complicado que uma semente que é uma cegonha que voa até Paris. Percebeu-o pela face lívida da mãe, e pela voz balbuciante. E nem a explicação que os dois progenitores, juntos, prepararam o melhor que souberam e lhe deram numa noite da semana seguinte o convenceu. Nem tão pouco o satisfez o dicionário, a que deu uso dois anos mais tarde. Foi construindo a sua própria definição, daqui e dali, lendo não sódas palavras, dos olhares e das melancolias dos outros mas também doseu próprio coração, que pulsava solitário e desesperado no corpoadolescente. E claro, lendo do seu livro também.
Era um livro de poesias que não rimavam. O amor nem sempre rima comalguma outra palavra, como Paulo veio a aprender. Tinha decorado olivro por inteiro. E apesar de tudo nunca deixou de gostar de o abrir ao acaso e ler os poemas que já conhecia. Cresceu sempre com aquele livro. Naquele dia estava guardado no porta luvas do Ford azul, aquele que Paulo comprou em segunda mão com os salários do seu primeiro emprego e com uma ajuda preciosa do rendimento do pai. Estacionou o automóvel à beira da praia, lá ao fundo o azul do mar e o do céufundiam-se um no outro.
Estava um dia de vento e não havia muita gente na praia. Ele descobriu-a facilmente. O longo cabelo esvoaçante, o olhar castanho cheio de palavras indíziveis. Naquele momento ele esqueceu todas as poesias do livro. E era como se tudo no mundo tivesse ganho sentido. Como se todas as coisas estivessem finalmente no lugar. Como se a poesia tivesse ganho corpo e saído da água, com os seus longos cabelos molhados.O que ele podia ter dito e não disse. A história que podia ter sido e não foi. Ele nunca vai saber porque é nunca leu aquela poesia que um dia apareceu ao acaso numa praia, como quem por acaso abre um livro. Mas soube naquele momento, enquanto o sol descia à altura do comum dos mortais e a praia se enchia de vazio que aquele tinha sido o maior erro da sua vida.
Até à próxima vez.