terça-feira, março 29

Acordou.

Acordou. A primeira coisa que viu foi o tecto branco. Depois olhou para o lado, para a mesa de cabeceira, tentando focar as imagens que lhe apareciam com uma forma indistinta. Olhou para o outro lado e viu a cama, larga, os lençóis brancos com um vazio tão vazio que se sabia que aquele lugar pertencia a alguém que não lá estava.

Não se lembrava de nada da noite anterior; nem da noite anterior nem de qualquer outra noite, nem de qualquer outro dia. Apenas sentia a seu lado um nada tremendo, um vácuo, um abismo de lençóis brancos, que afagava com a mão, como que em busca do que lá não estava. Sentia no ar um doce perfume de rosas, uma fragrância quase melódica, quase música por si própria.

Não tinha dúvidas: ele amara. Ainda ontem ele amara, e hoje não sabia nem quem, nem como. Ele próprio já não se sabia: toda a sua vida passada caíra no esquecimento do vazio. Lembrava apenas as Leis do Mundo e da Vida.

Preparava-se para se sentir triste, e triste deixar-se deitado, mergulhado em tempos de felicidade de que não tinha recordação. Mas, depois, súbitamente apaziguado pela certeza quente de ter amado e de ter sido amado, descobriu-se ainda feliz por sentir ainda o amor de ter amado um dia.

sexta-feira, março 25

O Leitor

O Leitor consumia os livros do príncipio ao fim, página a página, letra a letra. Devorava lentamente os caractéres, com volúpia. Ingeria gulosamente as metáforas e engolia, sem necessidade de bebericar o copo de água ao lado, todas as palavras, mesmo as mais intrincadas. Era um Leitor de apetite voraz: no fim da leitura sobrava apenas a capa, dura e intragável.
O Leitor levantou-se e foi dar uma volta ao bairro para fazer a digestão.

domingo, março 13

Mas

- Mas,
mas o quê? Já não sei... Parece tudo tão relativo.... Mesmo a rectidão das linhas dos prédios, mesmo o sol, mesmo a terra, mesmo o céu, nada é absoluto. E eu não sei. Penso noutra coisa, conto as luzes na cidade, as luzes no céu. E eu não sei, o que se sabe é relativo. O que se sabe é o que é, mesmo que não seja. Por isso não sei. E de repente mesmo um acto tão simples como contar estrelas parece impossivelmente abstracto. Tornam-se indefinidos os contornos da realidade, como num sonho. A realidade parece a percepção que temos dela e eu não sei mais. Então penso, mas o quê? Eu sei o que ia dizer, mas não sei exactamente porquê... Nesta infinita cadeia de acasos criou-se o mundo, criaram-se os animais e os homens, criou-se a língua, criou-se o meu ser, e tudo propiciou sempre este, mas. As escolhas parecem tropeçar umas nas outras, como as peças de dominó que caem sobre as peças seguintes. Valerá a pena?,

- Mas o quê?
- Mas nada...
e depois: tudo vale a pena, se a a alma não for pequena.
-Mas,

domingo, março 6

Time is money - and so what???

O tempo é relativo, mas toma absolutamente conta de nós. Devíamos, enfim, esquecermos o mundo a quatro dimenões, e contentarmo-nos com estas três em que nos movimentamos conscientemente, estas três dimensões espaciais; porque o tempo nos absorve e consome, sem que nós alguma vez consigamos recuá-lo ou apressa-lo. Tanto mais que esta sublime dimensão parece regozijar-se do nosso infortúnio: quando queremos que o tempo passe depressa os ponteiros do relógio são lentos, enfastiantes, demoram-se; quando queremos que o tempo seja vagaroso os ponteiros parecem saltar até posições horárias intermédias, tornando-se a uma da tarde nas três da tarde sem que pareça terem havido duas horas pelo meio.

Esta dimensão fez-nos seus escravos - para mais, temo bem que tudo seja afinal, um ciclo imenso, e que o tempo seja a mais gigantesca das ilusões humanas. Porque, pensando duas vezes, quem se lembrou de descobrir no ciclo de rotação da Terra sobre si mesma o dia, e na viagem do planeta à volta do Sol um ano? Quem, senão o homem se lembrou de se oferecer a estranha noção de que tudo passa, e de que o futuro chegará? Afinal, é apenas o mundo que se lembrou de andar a girar, a ziguezaguear por esse universo fora; e nós vimos nisso o futuro.

Este texto tende a tornar-se confuso como o tempo o é. Mas eu tento explicar de outra perspectiva: o futuro existe mesmo? Einstein provou que o tecido do tempo é permeável, e que podemos apressar o tempo, brincar com ele da mesma forma que ele brinca connosco. E que até, se conseguíssemos o impossível, poderíamos chegar a recuar ao passado. Proponho porém (enquanto nem todos possamos dominar a dimensão temporal e dela aproveitar-mo-nos) a abolição de todo o tempo, da areia que escorre nas ampulhetas à pedra que marca os sinais da sombra, os sinais do sol, da água das clepsidras aos caprichosos ponteiros de um grande relógio redondo. Proponho que façamos tudo com vagar, com a noção indefinida, animal e primitiva da vida. Sem agendas. Sem compromissos.

quarta-feira, março 2

dores em minúsculas

dor dói;
quarto escuro,
vultos, sombras,
adivinhas do mundo;
olhos cegos, mundo cego;
silhuetas recortadas
na luz inexistente;
passos que ecoam
profundamente
eternamente
constantemente
perpetuamente
sem cessar.
afinal, calas-te?
porquê?
calas-te?
está escuro,
ilumina;
o fim corta as vozes entrecortadas
o medo e a solidão
são sentimentos escuros;
acendam a luz, falem;
e ela é acendida e falam, mas
a luz é mais escura que o escuro
e o som mais mudo que o silêncio,
e tu, aí,
e tu, calas-te?