sexta-feira, novembro 19

Ver, ler, ouvir

A diferença do momento é apregoada naquilo que sentimos quando vemos, lemos, ouvimos.

Tudo o que recebemos das experiências vividas torna-nos diferentes, sem dúvida. Mas também tudo o que somos torna diferente a nossa maneira de ver, ler, ouvir. Porque em constante mudança, todos os momentos são bons para ganharmos uma percepção singular do que experenciamos.

Como ler um livro, um dia, e nele não ver vestígios de interesse, e noutro descobrir que fomos ludibriados porque o lemos num momento, num lugar emocional totalmente distinto. Porque estávamos constrangidos a um plano de emoções que não cabia naquela leitura, nem tão pouco a extravasava – que simplesmente se distanciava.

Quando o acaso nos junta a um livro que já segurámos nas mãos, ou a um filme já testemunhado pelos nossos olhos, ou a uma música já escutada pelos nossos ouvidos, descobrimos subitamente, talvez a culpa não seja do objecto, mas do que esperamos ver nele. Como se em todos os objectos esperássemos assitir ao reflexo dos nossos sentimentos naquele momento específico.

Teoria da Ordem

“São os eleitos para quem as coisas belas apenas significam Beleza”
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray

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Foi
num raio de sol. O Homem tinha passado dias, noites, tinha passado semanas, meses, anos, tinha dedicado toda a sua vida à construção daquela Teoria, e a resposta morava naquele único raio de sol. Pelas lentes dos óculos olhou os números, as letras, encavalitadas, deitadas sobre traços de fracções, agachadas sob raízes quadradas. Tanto desperdício de pensamento, e a resposta estava naquele singelo, raio de sol. Tinha descoberto o motivo matemático das coisas, a ordem sequencial de tudo o que era gerado. Apelidou as suas descobertas de Teoria da Ordem.

Foi num raio de sol. Dispensara muitos almoços e jantares, esquecera muitos livros sobre a mesa de cabeceira, descurara a saúde, tudo à espera daquele raio de sol, que sabia que viria. Quando ele chegou, porém, não reparou na sua doçura, pousando quente sobre a maciça mesa de madeira. Não percebera nele a sua secreta dança, a sua poética beleza. Apenas inferira nele a sua Teoria.

Diz-nos a História que foi uma maçã que segredou a Newton as leis da gravidade. Não nos diz se ele pegou na maçã e a comeu, saboreou, se se demorou nela, se apreciou as suas cores, se se deixou preencher da cor do céu ao cair do sol, do chilrear dos pássaros. Mas agora o Homem sabia que tudo tinha a sua ordem o seu destino. Sabia que a beleza era uma variável equacional, fruto da Ordem do tempo, do espaço, das coisas, estabelecida por aquela Teoria. Perdido isso, perdido até o acaso de formas, esgotava-se a beleza do mundo, por falta de argumentos.

Enquanto prosseguia a sua fúria científica, de definição da totalidade do Universo, o Homem viu o seu olhar escapulir-se do seu pensar e encontrar um livro. Não desses livros em que se inundavava, cheios de variáveis, números, cheios de constantes, expressões, derivadas. Não, aquele era belo. Fútil portanto.

Os olhos do Homem perderam-se naquela capa. Cheirou o livro, como se houvesse cheiro para cheirar. Abriu lentamente as páginas. Os sentimentos revolviam-se enquanto as suas mãos abriam o livro lentamente. Tudo o que não era belo perdia ali importância; também o tempo perdeu a sua. Tudo era lento, tudo era rápido. O Homem deixou-se consumir pela harmonia pecaminosa do livro. Inclinou a cabeça para trás e entregou-se a reflexões proibidas. Entregou-se à pureza das frases, que conferiam novos significados a mesmas palavras. Entregou-se.
Esqueceu por momentos o apelo da ciência. Deixou-se submerso pela cor do texto, perdeu a conta ao mundo. Esquecimentos desses são fatais – se a História não se lembra do paraíso das maçãs, mas apenas das maçãs do paraíso, também é verdade que são nessa mesma História muito presentes e muito recordadas as fatalidades. Desde que o homem sente, o homem erra. Desde que o Homem sente, o Homem erra. Agora caminhava o Homem errante pelo sabor doce de um bom livro, e já lhe parecia um erro a sua Teoria.


Seria a sua ruína, sim, mas uma bela ruína. Seria votado ao desprezo pela comunidade científica? Quem o sabe? Apetecia-lhe agora o caos, mas não um qualquer caos; apetecia-lhe as coisas dispostas de forma pura, singular. Apetecia-lhe forma, luz, cor. Apetecia-lhe arte. Para elem as linhas endiabradas rasgando quadros de arte moderna, ou os rostos angelicais das esculturas renascentistas ganhavam agora novo significado. Desvendava-se a solução do sorriso, do olhar de Mona Lisa, entendia-se a força de um quadro de Van Gogh, percebia-se a obsessão geométrica de Mondrian.

Em última instância, a sua natureza revelara-se na opção: preferiu ver o pôr-do-sol do que ser por ele iluminado. Agradava-lhe sem dúvida. Observou tudo o que pode até adormecer.

quinta-feira, novembro 4

Uma imagem, mil palavras...

qualquer coisa de palavra nesta imagem, talvez o nada de urbano que ela tem.

segunda-feira, novembro 1

Desabafos contra o governo do Mundo

O Mundo é governado por uma minoria autoritária. Uma minoria que usa o poder militar sem escrúpulos, como se os cidadãos do mundo se reduzissem a personagens virtuais de um qualquer jogo de estratégia militar, jogado no computador por uns quantos seres irreflectidos. Tais seres dão-se ao trabalho de dar vida aos seus fantoches, de os programar, de os armar, para depois se lançarem em supostas cruzadas de bravura contra os inimigos do Mundo, seus amigos de longa data. Dão-se ao trabalho de descobrir falsas evidências da necessidade de invadir um outro país, para depois, sem convencerem ninguém de que dizem a verdade, sem o consentimento da maior parte do Mundo, tornarem a invasão um facto consumado.

Para mais, aqueles que mais sofrem com a exploração dos que governam o Mundo como seu não elegem os governantes, o que torna este sistema de sujeição do Mundo ao poder externo imperial norte-americano uma autêntica ditadura. Aos que se insurgem contra esse poder desproporcionado sobre o Mundo e que não têm qualquer peso na decisão de quem o irá exercer, resta-lhes olhar com estupefacção os resultados das sondagens pela televisão, entalados entre a história de mais mortos no Iraque (banalidades!) e outra sobre o último atentado ocorrido em Israel (trivialidades), e esperar que mais não seja que uma mentira, uma partida de mau gosto, que não seja possível que um país inteiro se revele tão indulgente para com o modo opressivo que o seu presidente escolheu para comandar o país que anda a moldar os destinos deste Mundo que julga ser sua possessão.

Resta-me a mim também esperar que terça ou quarta-feira, sem escândalos, seja cantada aos ventos a boa notícia de uma mudança, e esperar depois que Kerry saiba realmente distinguir o certo do errado.