sexta-feira, dezembro 31

Sal, pimenta, alho, limão, salsa e oregãos

Por esta altura do ano, sob a luz, cor e som do fogo de artíficio, escutando com atenção e deleite uma música calma, dançando, cantando, festejando, ouvindo ritmos mais acelerados, com Deus, em paz e pela paz, com os amigos, com a família, com quem se desconhece, mesmo só, com um copo de champagne na mão, isolado, com a cara recortada contra o cheio luar do céu, enfim – todos se alegram pelo ano findo e pelo ano vindouro. Depois é a contagem decrescente, os olhos fitos no relógio, os ouvidos atentando na voz, enfim – chega-se ao momento crucial, abre-se o champagne, comem-se as doze passas, e tomam-se aquelas resoluções que (como muitas vezes o sabemos de antemão), não vamos seguir no ano que começa ali. Não é assim para todos, nada do que chega é para todos neste mundo. Mas é assim, muitas vezes, pelo menos para mim, que estou sempre convicto de que no ano seguinte porei em prática os meus projectos, as minhas metas, as minhas ideias, mas nunca tal acontece. Por isso este ano, decidi colocar doze perguntas na mesa, no lugar das tradicionais doze passas:

Janeiro: Para quê perguntar?
Fevereiro: Para quê responder?
Março: O que é importante?
Abril: O que é possível?
Maio: O que é feito?
Junho: O que é belo?
Julho: O que é errado?
Agosto: O que é mau?
Setembro: Porquê a existência?
Outubro: O que é a existência?
Novembro: O que é a verdade?
Dezembro, e esta é, realmente a pergunta essencial: Porque não consegui eu responder a nenhuma destas perguntas?

A tudo e a todos um bom ano novo – a velha frase está gasta e corroída pela insensatez do uso, e se alguma vez teve sabor e aroma é agora ínsipida, e por isso mesmo peço ao leitor que a salgue e tempere a seu gosto, para que seja realmente um ano suculento e que apeteça ao paladar.


quinta-feira, dezembro 30

Coração

O coração era tido como o orgão que amava sobre todas as coisas. E aqueles que nunca amavam, com frieza exigiam e exibiam dos outros o coração, por não saberem que ele amava. Mas, séculos depois, um neurocirurgião, dono de muita razão, veio dizer que o coração não amava, era o cérebro que o fazia; o cérebro, que à primeira vista parecia dono de tanto siso, era posto assim a descoberto como sendo um desvairado, apaixonado. E porém, parece perigoso, misturar assim a razão e o sentimento! Mas tal não livrou os românticos de, em tardes em que o sol, langoroso, esticava pelo céu os seus raios luminosos, gravarem em troncos grossos e fortes, corações sem veias nem artérias.

- Oh! desenganem-se os iludidos!,
vociferam os que, do alto do seu saber, contemplam com um sorriso irónico tais imagens. O coração é um músculo esforçado, é uma bomba de sangue. Uma bomba de sangue?! Então podia ser... Então é possível, ter coração e não ter sentimento, então é posssível que no mundo tanto sangue exploda, com estrondo, então são possíveis as bombas dispoletadas pelo rancor, pelo ódio. Então é possível, que falta de amor!

quarta-feira, dezembro 29

Imagens na retina

A retina fixa as imagens a uma velocidade esmagadora, uma realidade inimaginável, tão íncrivel, tão demolidora, como só a realidade o é, como nenhuma mente humana sã pode conceber. No chão de madeira juntam-se centenas de corpos, o sangue dos feridos junta-se às lágrimas daqueles que desesperam, daqueles que ainda não acreditam, e que aos poucos vão aceitando o que inevitavelmente terão de aceitar. No meio do caos, envoltas pelo cheiro pútrido dos cadáveres à sua volta, pessoas procuram nos rostos desfigurados reconhecer traços de familiares perdidos, talvez com uma esperança de não encontrarem, talvez com esperança de esperança.

A retina fixa as imagens a uma velocidade esmagadora, eu, aqui, a minha retina, pela televisão, os jornais, pela rádio, sentindo com estupefacção e impotência a dor que não consigo imaginar do outro lado do mundo. Sem água, sem luz, no meio das paisagens devastadas, o desespero humano conhece novos limites. Nestes momentos, em que nos apoiamos mutuamente, quase que descobrimos em nós um ser racional, quase nos compreendemos. Os mortos são contados e recontados, e dia a dia vamos perdendo as ilusões, vamos cancelando as viagens para o paraíso ídilico em que tanto tinhamos sonhado ir passar férias, vamos temendo mais e mais mortes; e nunca, como agora, se afigurou a morte como uma coisa tão arrasadora e prematura.

segunda-feira, dezembro 27

Despedida

Uma brisa fresca corria, suavemente, como uma música de embalar. Nem corria, voava, como palavras de um poema. O sol não se compadecia do corpo que, recortado na sombra, esperava o momento da despedida, como se mais que corpo não fosse. O sol não se compadecia e subia e subia. O corpo aquecia-se com uma caneca de leite quente, sentado no último degrau da escada, contemplando o céu como se fosse a última vez que o via. Depois uma mão amiga num ombro, mas uma mão amiga triste, uma mão amiga no dia de despedida.
– É hoje, não é?
Como se não o soubesse suficientemente bem,
– Não podes ficar nem mais um dia?
O corpo virou-se, a boca muda, os olhos falando na sua vez. Não eram precisas palavras. Sim, era hoje. Sim, podia ser para sempre. O corpo e a mão amiga concentraram-se no piar dos pássaros. Parecia tão triste naquela manhã!


Este era o dia em que as palavras perdiam expressão, voando para longe, como corvos muito negros, recortados contra o claro azul do céu. Este era o dia em que as palavras se reduziam a silêncio e significado.

A mão amiga voltou, segurando uma segunda caneca de leite fumegante. Bebiam aquele leite juntos, como se fosse por uma só caneca. Podia bem ser a última vez. Já se tinham despedido antes, mas nunca numa manhã como aquela, nunca por motivo semelhante.

Quando nas canecas não sobrou mais leite, quando o som das palavras deixou de ressoar nas paredes brancas da casa e quando cessou o piar dos pássaros, o corpo ergueu-se e a mão deixou cair-se, num gesto moroso e pesado. Era aquele o momento da despedida. Pode não ser a última, segredavam um ao outro em silêncios prolongados. Pode até não ser a última, talvez para se convencerem de que podia, realmente, não ser a última das despedidas.

A mão ergueu-se num acenar melancólico, enquanto o corpo ao longe ia encolhendo cada vez mais, até que se esmoreceu completamente na paisagem de serras e vales e céu e Inverno. O corpo andava como se não soubesse para onde ia, mas era precisamente o conhecimento do destino que o atormentava. Olhou para trás, desejando toda a serenidade da aldeia que desaparecia, procurando o conforto da mão amiga acenando. Perdeu finalmente a serenidade e o conforto. Pode ser que não seja a última despedida. Pode ser que não seja a última,
Despedida.

sexta-feira, dezembro 17

A jarra

Uma jarra de porcelana, muito fina, muito branca, jazia sobre a mesa, evidenciava-se na sala, toda decorada com móveis escuros e pesados. Uma jarra, muito fina, muito branca, com uma pega dourada e talhada e um gargalo longo que se abria como o botão de uma flor. Pintados na jarra um homem e um rio. Um rio muito homem, que passava lambendo os humanos pés, e um homem muito rio, de corpo estirado sobre a relva, contemplando com olhar pensativo o exterior, ao mesmo tempo reflectindo o mundo e reflectindo sobre ele. Os olhos do homem são um mundo outro, o que dava à pintura nova dimensão. Era um mundo etéreo, acima da realidade. Naqueles olhos todos os rios confluiam num só.

A jarra era um paradoxo. Um rio homem, um homem rio, um mundo imaginário dentro de um mundo real. E para se dar como insolucionável a pintura da jarra de porcelana, bastou que o homem pintura, tão real, tão rio, tão pouco pintura, ganhasse movimento, como se fosse homem sonho também. Não me espantei quando o homem se ergueu - mais me deliciei com a forma e poesia dos seus movimentos.

Então o homem mergulhou nas águas do rio, e o rio que era homem e o homem que era rio fundiram-se num só. A água do rio brotou da jarra e realizou-se no meu mundo, um mundo que, afinal, me parecia tão verdadeiro que tomei aquela água por água também ela verdadeira. A água do rio brotou da jarra e escorreu até formar o leito de um rio muito homem muito rio, que banhou e banha e banhará o meu mundo tão verdadeiro até ao dia em que o tempo não se lembre mais em que dia está.

quinta-feira, dezembro 16

Os olhos do diabo

Não me tinha apercebido. Finda a leitura d'"O Retrato de Dorian Gray" descobri que a beleza da alma e a beleza do corpo não estão tão distantes uma da outra quanto isso; descobri que existem as marcas do tempo e as marcas do pecado, e que ambas se repercutem no corpo. Não me refiro às marcas do pecado segundo os cânones da Igreja Católica, nem aos pecados mortais. Refiro-me ao pecado como aquilo que sabemos estar errado. Quando fazemos, por convicção, algo que sabemos errado, tiramos dessa acção um prazer muito mordaz. Um prazer que nos é incutido no brilho dos olhos e no trejeito da boca, para todo o sempre, tal comos os sulcos que o tempo cava na nossa testa.

Gosto dos olhos. Não são sequer olhos se não forem mais que rostos. Olhem bem nos olhos. Verão nele representada toda a alma do opositor. O que se arrepende do seu grave erro terá nos seus olhos a marca eterna do seu arrependimento. São olhos baixos; ou olham o chão ou olham o alto de cabeça vergada. Os olhos dos que, errando, não mostram remorsos pelo seu delito, têm então os olhos inundados de prazer. Parecem os olhos do diabo - e nem temos conhecimento de como tem o diabo os olhos. São olhos que brilham e luzem, são olhos que se riem, não com um riso alegre e cristalino mas com um riso de prazer sádico e mordaz.

segunda-feira, dezembro 13

O meu espanto

"Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam"
Pe. António Vieira
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Este blog já tem dois meses. É espantoso verificar como a efeméride não foi devidamente celebrada ou notada. É ainda mais espantoso constantar que o blog se mantêm. Isto porque, quando me surgem novas ideias de criação, também se gera em mim um impulso destrutivo. Nada de radical ou violento. Talvez por falta de espaço para criar algo novo, sinto a simples necessidade de desfazer o que é antigo.

O ano passado, na disciplina de Filosofia - um nome pomposo para uma área lectiva, como se houvesse espaço para o pensamento livre numa escola portuguesa - foi-me ensinado que um orador não dispensa o auditório, porque é do auditório orador que nasce nova oração no orador orador. Quero dizer, neste jeito propositadamente intrincado, que é da resposta do auditório que nasce o assunto para nova exposição do orador. É um diálogo.

Eu dialogo com o mundo. Talvez por isso ainda não o tenha dispensado. Mantenho-o sempre junto de mim, como que vivendo nele, e de vez em quando ele fala comigo e eu respondo-lhe. Com este blog não conheço auditório. Talvez ele more do outro lado silencioso, como as árvores em dias parados e sem vento ou talvez do outro lado seja só o vento sem árvores. Mas mesmo assim não cedi a apetites devastadores. É só o que me espanta. Porque até realiza ter algo criado que se possa encerrar; ou algo criado em que se possa publicar.

Gostaria que expusessem neste "post" as vossas opiniões no competo geral sobre estes últimos dois meses. Que dêem sinal de que ouvem, mesmo que mais não seja, porque esse ouvir em silêncio já satisfazia o Padre António Vieira, grande senhor da língua portuguesa, e também com esse me terei que satisfazer.

quinta-feira, dezembro 9

Um croissant e um galão

A opinião dos ortopedistas é consensual. Esta é uma má posição para estar sentado. Devíamos permanecer com as costas bem rectas. Não há problema, é só no Natal; se, na nossa sociedade isso desculpa o desvario consumista e a gula próprias da época, não vejo porque não há-de justificar a posição com que ocupo uma das cadeiras da esplanada. Na época natalícia a posição de observador, mesmo com uma postura incorrecta da coluna, e ainda para mais acompanhada de um galão e de um croissant é privilegiada. Tenho ouvido dizer que em tempos outros ninguém parava para observar porque poucos podiam parar e os que tinham esse direito muitas vezes se excusavam a olhar. Hoje em dia, porém, o problema é diverso: são muitos os que param, são muitos os que observam, não tantos os que param e observam e ainda menos os que param e observam o que não está detrás de uma montra ou não vem num catálogo.
Não pretendo aqui monologar sobre o espírito de Natal ou acerca da obsessão consumista do nosso mundo globalizado. Estou certo de que já houve quem o tenha feito, com mais "engenho e saber" que eu. Nem tão pouco pretendo zombar dos grandes autores que sobre esses assuntos divagaram. Não me interessa sequer pretextar este texto que começou, aliás, por um acaso, um croissant e um galão.
Não quero abdicar das vantagens de ser observador cometendo apreciações parciais, mas inevitavelmente terminarei por o fazer, pelo que peço desculpa. Das lojas, vejo, entram e saem pessoas enterradas em sacos cheios de Natal. Por vezes apreciam o peso da carteira que não sentem decrescer - viva os cartões de crédito. Prosseguem. Entre outras coisas verificam se o Natal tem o tamanho certo para vestir, ou se não passou do prazo de validade. Desenganem-se os que, puros de alma - ingénuos, se preterirmos de eufemismos - acreditam que Natal é amor, paz, esperança. Natal é presentes. As pessoas é que podem ter amor, paz, esperança - ou não. É uma questão de escolha. É como diz a senhora que se debruça com olhar de dúvida sobre a montra em frente:
– Levo a branca ou a vermelha?
Desde que, por ocasião do nascimento de Cristo, os Reis Magos descobriram na oferta de presentes uma gratificação, um sinal, mais que um suborno, que esta ideia de Natal se tornou legítima. Porque se Cristo é amor, paz, esperança, é Cristo que o é, não o Natal. Porque não é às datas que pertencem os sentimentos, mas aos Homens. Sim, se o Homem tanta vez se autocognominou de racional, que por uma vez faça valer tal apelido. Séculos depois chegou São Nicolau, figura lendária, cheio de verdades perdidas no nevoeiro do tempo. Diz-se que este santo distribuia presentes pelas crianças, e sorria adivinhando sorrisos nas suas caras miúdas. As pessoas começaram então a perceber que o Natal, em si, se resume a presentes. E como todas os dão, todas recebem – todas sorriem.
Porque as pessoas sentem sempre necessidade das suas invenções, deleitaram-se inventando a imagem de um velho gorducho, de cachimbo, para explicar os presentes que misteriosamente apareciam às crianças como um milagre, esse sim, de amor, paz e esperança: estavam lá presentes. Hoje, inundados pelos anúncios televisivos, mais depressa sentimos a necessidade de sermos criteriosos na nossa escolha, mas enquanto criança pura, um presente é sempre um presente. O Pai Natal teve direito a inúmeros consultores da imagem, o que demonstra que ele é um produto de uma sociedade crescentemente globalizada. Um artista contratado pela Coca-Cola, num Inverno dos anos 30, decidiu emprestar-lhe a sua própria cara. Talvez inspirado por uma imagem de uma revista datada de 1866, que mostrava um Pai Natal semelhante ao que hoje conhecemos, ou simplesmente para espalhar as cores da Coca-Cola pelo mundo, esse mesmo artista pintou de vermelho e branco o velhinho de barbas. No Natal de 1939, o Pai Natal recebe de presente um auxiliar: a rena Rudolph, foi criada para ser oferecida sob a forma de letras aos clientes da Montgomery Ward, uma loja americana.
E eis que, de geração em geração, adornando as palavras com outras palavras, a celebração do nascimento de Jesus se traduz nos tempos como um acontecimento comercial singular, em que todos dão e todos recebem presentes. Eis como tudo flui no sentido de tornar as renas, os duendes, os pais natais e as mães natais em estrelas de anúncios televisivos, levando-nos a esta imparável busca de presentes. Dou assim por terminado o croissant. Se me dão licença, tenho de ir comprar os presentes.