sexta-feira, janeiro 20

Stairway to Heaven

"There's a lady who's sure all that glitters is gold
And she's buying a stairway to heaven
And when she gets there she knows if the stores are closed
With a word she can get what she came for."
Led Zeppelin, Stairway to Heaven.

Uma mulher caminhava pela rua acima. Eram sete da manhã. O vento era um sopro frio em que corropiavam as cores da última folha de Outono. Caminhava quase sempre com o olhar preso ao chão. Mas quando o sol brilhou por entre a massa nebulosa que envolvia o céu e a cidade debaixo dele, ela olhou para cima e então teve a certeza que tudo o que luz é ouro.

Palmilhara aquela rua, de baixo para cima, em todas as manhãs de que se lembrava, e sabia que a rua levava a outras ruas, e que todas se perdiam no aglomerado cinzento que era a cidade. Caminhava sem pressas, com o vagar de quem não tem nada para descobrir. Os pensamentos vagabundeavam por um labirinto de sonhos sem saída, histórias paralelas, palavras que se entrecruzavam. Foi por isso que não viu o céu encher-se de noite, nem as nuvens se dissolverem. O sol voltou a brilhar eram sete da manhã, o céu era azul e claro e resplandecia, e ela teve a certeza de que tudo o que luz é o ouro. E fechou os olhos e inspirou fundo, muito fundo, e abriu os olhos e então viu que se tinha perdido das ruas que, angustiadas, se contorciam com dores, ladeadas por prédios impassíveis, rectos e frios. Havia verde, muito verde, a relva, linhas de cor compulsivas que escorriam orvalho, as folhas nas árvores que não se apagavam com o sopro do Inverno, e havia flores brotando por entre o verde.

Ela sabe porque está ali. Ela sabe porque se perdeu. Sente o seu corpo e a sua alma observadas por todo o mundo, suspenso nas suas acções e movimentos, como se assistisse o último minuto do mais emocionante jogo de fútebol, ou a cena da reviravolta num filme emocionante. No fim do caminho de terra que já foi uma estrada de alcatrão, está um homem, sentado, encostado a uma árvore. Tem uma face secada pelo tempo. Umas rugas definilhem-lhe a largura do sorriso, outras marcam a expressão que teria se engelhasse a testa. E quantas vezes sorriu, e quantas vezes engelhou a testa. Os olhos vivem ainda, mais do que tudo o resto no seu rosto, como se aquele homem soubesse ter ainda uma missão que estava para durar. À sua frente havia um rio, de leito não muito largo mas de corrente forte e traiçoeira e, flutuando no rio mas preso à margem por uma corda e uma estaca, uma pequena barca. Ela sabe o que tem que fazer, e caminha até ao homem.

O homem não precisou de se virar para saber que ela estava ali, como se há muito tempo não fizesse outra coisa que não esperar por ela. E então disse-lhe, A palavra, e a mulher estava desorientada, a mão esquerda pronta para abrir a bolsa, a mão direita preparada para tirar a carteira dentro dela, e ele pede-lhe uma palavra, Uma palavra?, perguntou a mulher, e o homem deu-lhe uma resposta que podia soar rude em qualquer outra boca mas naquela não soava, Foi o que eu disse. A mulher olha em frente. A outra magem está escondida no nevoeiro, mas ela sabe ao que veio.

Uma palavra. Ele precisa de uma palavra. Uma palavra que signifique o tudo e o nada ao mesmo tempo, uma palavra só que abra as primeiras portas e as portas derradeiras, e as portas que não são portas. Ela podia sentir a palavra a pulsar-lhe nas veias, mas não a sabia pronunciar, nem tão pouco escrever, e por isso colocou a mão sobre o ombro do homem e ele voltou-se e ela olhou-o e ele soube o que ela queria dizer. Levantou-se e estendeu o braço e os dedos da mão e apontou-lhe a barca. Ela sentou-se, com cuidado para não molhar os sapatos. Ele retirou a corda que prendia a barca a terra. Ela procurava o seu destino na névoa. Ele pegou nos remos de madeira. Aos braços lançava-os para a frente e para trás, com perfeita noção do esforço preciso que precisava colocar em cada movimento para ter a máxima eficácia. A barca parecia impertubável pela corrente, como se as forças da natureza não tivessem influência no seu movimento.

Quando chegou à outra margem a mulher procurou o caminho por onde veio, mas agora era este que estava desaparecido na neblina. Depois olhou o barqueiro. Sem uma palavra ele começou a remar de volta. Ela sabia que não ia precisar de uma viagem de regresso. Ela sabia o que queria. Quando olhou viu-a. Era uma torre sem fim. Para chegar até ela era só seguir o mesmo carreiro de terra batida que sempre seguira até àquele rio sem nome. Sempre o mesmo caminho, claro como se não houvesse nenhum outro. E, porém, nunca o tinha visto antes.

O sol rejubilou numa placa de metal que encimava a porta de entrada da torre. Então a mulher teve a certeza que, se nem tudo o que luz é ouro, pelo menos é bonito. Bastava-lhe. Ela tinha também a certeza que era a mesma coisa. Havia na placa uma palavra. As palavras têm sempre muitos sentidos dísparos. E esta, que estava escrita em português, era uma palavra só dela?

A torre guardava uma escada longa, longa como a torre, sem fim que se esperasse, mas com um céu que se adivinhava. Uma escada em espiral, a ascensão última depois de tantos quilómetros de caminho plano, tantos quilómetros que não são possíveis de contar. Começa-se pelo primeiro degrau. Depois o segundo. O corpo solta-se como se fosse um só com a alma e voa porque, como se sabe, as almas são as coisas mais leves do mundo, as consciências é que lhes pesam e as prendem à terra.

E apesar de ter acordado tantas vezes sempre na mesma cidade sem saber que um dia a rua que sempre percorria daria a uma floresta, a um homem e ao seu rio e a uma escada tinha agora quase a certeza de ter preparado todas essas manhãs para este momento.

quarta-feira, janeiro 4

Novo blogue e um "poeta nocturno"

O meu novo blogue, menos literário, chama-se pelo mundo adentro... Têm uns minutos que he possam dispensar? Ele agradece...
E depois para falar de um tal de António Gancho... Parece que era poeta e louco... Pergunto eu, não o somos todos um pouco???
Gostei dos poemas dele, que descobri agora, pela sua morte, quando o artista mais é apreciado - destinos! -, que até fazem muito sentido, pelo menos para mim - talvez seja defeito meu, que descubro sentidos em tudo e insignificância em coisa nenhuma...- e mesmo que não fizessem são belos, e espontâneos, e isso é quase tudo o que se pode pedir a um poema.