quinta-feira, março 30

o fim do príncipio

Os começos são sempre complicados, pensou um homem, enquanto esperava que o comboio chegasse finalmente à estação. Depois do princípio as coisas cansam-se da existência, correm naturalmente para um fim. A eternidade é maçadora.
Existe um relógio quadrado na estação. Gosto muito mais dos relógios redondos. Era muito mais poético dizer que existe um relógio redondo na estação. Esqueçam lá a história do relógio quadrado, não havia na estação relógios quadrados. Era um relógio redondo e o ponteiro das horas apontava para as doze, o dos minutos estava quase sobre o cinco, e o dos segundos caminhava incessantemente e sem destino, tiquetaque, tiquetaque. Parece que o tempo dura uma eternidade.
Este homem que está aqui na estação tem um casaco preto, formal, uma gravata azul, uma camisa branca. Está aqui, parado, à espera que finalmente comece alguma coisa. Que chegue um comboio, com barulhos de motor, ruídos de locomoção. A bem dizer a história só devia começar quando o comboio cá chegasse. Está ali um personagem, pronto a entrar num comboio, sem destino que se adivinhe. E o comboio não chega, a história não começa. O homem está a perder a paciência, se não aparece nada guinchando sobre aqueles carris ali nos próximos tempos ele é bem capaz de ir a uma outra história qualquer.
Às vezes acontece uma destas cenas enfastiantes. Não me resta grande coisa a não ser falar de relógios redondos. O homem está a começar irritado. Pelo olhar ameaçador, em chegando o supracitado transporte, este texto é bem capaz de se tornar um policial. Não existe mais ninguém na estação e está um sol abrasador, o homem suando debaixo de casaco e camisa e gravata. Quem é que aqui o foi enfiar, envergando casaco e camisa e gravata. Se calhar era melhor usar apenas uma t-shirt, roupa casual.
Estou a começar a entrar em estado de desespero.
Começam a chegar mais pessoas à estação. Um casal de namorados, de mão dada, descendo as escadas para a plataforma sem pressas, olhando-se um ao outro, beijando-se um ou outro de poucos em poucos metros. Um jovem adulto, alto e esguio e pálido, ligeiramente curvado para a frente, com olhos negros, olhos que já não se descaem profundamente em sonos há pelo menos três dias. Uma família inteira, um rapaz de cinco anos com um boné ligeiramente descaído para o lado, uma rapariga de dez com um aparelho nos dentes e tédio na face, um pai e uma mãe de mãe idade, carregados de malas, uma castanha, outra azul, mais algumas mochilas, e ainda um canário amarelo dentro de uma gaiola dourada. Vá-se lá saber o que faz um casal de namorados, um jovem com olhos carregados de vigílias, uma família média e um canário na mesma história.
um comboio lá ao fundo. Eu sei porque já vi muitos comboios chegar. Esta é a trigésima sexta vez que começo uma história com homens que esperam por comboios em estações com relógios redondos. O que me leva a pensar que, em abono da originalidade, se calhar o relógio devia ser quadrado. Os últimos trinta e seis enredos perderam-se sem entrar no comboio. É sintomático e leva-me a pensar que talvez as conclusões não sejam tão simples assim. Mas os finais são certamente. Qualquer começo tem o seu final, quer seja ou não Casaram-se e viveram felizes para sempre.
O homem da história, aquele que pensava que os começos são sempre complicados, esse é que já não está aqui. De entre os que aqui estão à espera de comboios não existe nenhum que pense que os começos são complicados.
Esta é a explicação para que eu agora ande aqui a correr escada acima, a sair da estação e a entrar no centro comercial, procurando entre a multidão de comerciantes, consumidores e simples transeuntes, todos simples figurantes, diga-se de passagem, à procura de um homem que vista casaco preto, camisa branca e gravata azul. Vejo-o num restaurante fast food mexicano, com os seus olhos fixos nos olhos verdes de uma mulher em vestido vermelho dizendo, Por favor, vem comigo, não posso partir sem ti.
Eu sento-me numa das mesas vagas, olho o casal por cima do menú, e rezo para que a mulher diga, Eu quero ir contigo ou qualquer outra coisa que faça disto um começo e não um final.

terça-feira, março 21

Solidão

Devia ser meia-noite, pelo menos. Lua cheia lá fora. A porta à frente dele era a porta da sua casa. Ele abriu-a e olhou todo o comprimento do vestíbulo de entrada. Pendurou a gabardine no cabide. Não estava molhada. O céu estava descoberto. Via-se a lua por inteiro.
O som dos seus passos resoou dentro do seu corpo, que não era corpo, era uma casa vazia.
Era só o som dos seus passos e o silêncio.
A última porta à esquerda de quem entrava, era a porta do seu quarto. A porta à frente dele era a porta do seu quarto. Bateu na porta de madeira com os nós dos dedos, cerrados num punho. Perguntou, Está aí alguém?
Abriu a porta. Sentou-se na borda da cama. Fechou os olhos.
Não estava ninguém.

sexta-feira, março 10

Coisas Simples 7

Era noite e estava frio lá fora. Não haviam nuvens no céu. Se não fossem estas luzes, que ladeiam a rua de ambos os lados, que estão nos faróis dos automóveis que vão e dos que chegam e dos que continuam a vaguear sem destino, e também as que iluminam os placares publicitários, se não fossem essas luzes o céu estaria estrelado. Talvez a história fosse outra, pensou um homem de calças de ganga, e camisola negra, de algodão. O cabelo curto e os olhos eram também negros. Eram olhos sem estrelas, como o céu sobre a cidade. Tinha umas salientes maçãs do rosto, uma face magra e lívida, como se sugada por forças ínvisiveis. A barba estava por fazer. Nos lábios, duas linhas ténues que eram como se não existissem, um cigarro extinguia-se.

O homem fechou os olhos e depois expirou o fumo e depois abriu os olhos e viu o prédio. Parou de chover. Era agora, não valia a pena esperar mais. Quando, em noites como esta, se encontrava completamente sóbrio, sentia sempre receio de qualquer coisa que não sabia bem o que era. E olhava bem, e certificava-se várias vezes que estava completamente só. E às vezes quase desejava não estar só. O que era um erro, obviamente. Pensou nisso e arrumou a questão. O olhar duro preso ao prédio do outro lado da rua.

Havia um vento frio que às vezes soprava com força e abanava as copas das árvores. Na mão direita o homem tinha uma mala negra. Uma mala que podia conter qualquer coisa. Abriu-a com um simples movimento coordenado das suas duas mãos, como se já a tivesse abrido muitas vezes. A primeira coisa que tirou foi um par de luvas negras.

Sentiu a adrenalina crescer e sorriu. Gostava daquilo. Tinha completo domínio do movimento do seu corpo, do movimento dos seus dedos magros calçando as luvas negras, envolvendo a pega da mala negra. Nestes momentos gostava do desafio da situação, da incerteza do fúturo, em contraste com o total controlo que tinha de si próprio. A adrenalina vencia sempre sobre o seu medo e sobre a sua moral. Quando era pequeno costumava acreditar no pai Natal, embora ele nunca lhe tivesse trazido o que ele pedira. Até aos seis anos acreditou em Deus, até começar a fazer de tudo para não ter que ir à catequese aos sábados de manhã. Até aos oito anos ainda acreditou na mãe. Mas nunca acreditou na moral.

Nunca percebeu porque é haviam coisas que eram boas e coisas que eram más. Porque não eram simplesmente coisas. Porque é que as pessoas faziam o que lhe diziam que era mau e o obrigavam a actuar segundo o que lhe diziam que era bom. Ele tinha a sua própria consciência das coisas. As coisas, as coisas verdadeiras, como o céu e a chuva, são coisas complicadas. A moral é, simplesmente, demasiado simples para as coisas.

Mas ele não pensava nisto. Ele agora não queria pensar nisto. Sentia uma energia própria destas ocasiões brotar-lhe no corpo. Agora não tinha sombras, não tinha temores que o apagavam na escuridão. Tinha apenas um objectivo. Concreto e simples. Sólido. Sabia exactamente o que tinha a fazer.

Atravessou a estrada com passos firmes e largos. Pôs o joelho direito no chão, a flectiu a perna esquerda. Abriu a mala negra. Nela estava tudo o que precisava. Concentrou os seus dois olhos negros no buraco da fechadura.