domingo, agosto 14

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Acordou, sobressaltado. Tinha tido um desses sonhos obscuros que por vezes assaltam as noites de rompante, sem aviso. Todas as luzes se tinham apagado e restava apenas a débil chama de uma vela. E todo o amor do mundo existia apenas à sua luz: depois desaparecia num negro mar de sombras onde se advinham as formas dos corpos. Sentiu os lábios aquecerem com a proximidade da chama. E, enquanto pensava, com amargura que todo o sentimento humano se podia extinguir simplesmente naquele preciso instante apenas com o sopro dos seus lábios, acordou, sobressaltado. Por vezes, pensava Homero enquanto calçava os chinelos, podemos prever os dias pela forma como acordamos.

Sentia os seus passos pesarem cadenciados sobre o piso de madeira. Estacou momentaneamente, a meio caminho no hall entre o quarto e a cozinha. Tinha a certeza de ter ouvido um ruído. Sentiu-se impelido a abrir a porta de entrada. Do lado de lá o mundo parecia ter-se esvaído no ar. Sobrava a atmosfera: umas quantas nuvens esponjosas e brancas, um vibrante céu azul, um sol redondo brilhando intensamente. As situações inesperadas, como esta, sujerem sempre cautela, medo e desconfiança. Porém, naquele instante específico, o absurdo avivou a curiosidade de Homero, que decidiu lançar-se à deriva no ar. Homero sentiu pesar no seu corpo pesar a força gravítica que não o atraía agora a um segundo corpo, como seria de esperar, mas antes à ausência dele. A queda parecia interminável, mas finalmente terminou no local onde ainda ontem devia ter estado o centro da Terra.

Homero não estava só. Aliás, encontravam-se ali várias pessoas discutindo calorosamente. Como uma delas lhe explicou amavelmente. a história do mundo terminava ali. À falta de novas ideias para executar, encerrava-se ali o mundo. De qualquer forma, considerava um homem com ar pensativo, não há dúvida de que este mundo saiu uma bela obra. Bastante interessante do ponto de vista artístico. A bom dizer, pensava Homero, estes discursos não pareciam fazer grande sentido, mas, como aliás o seu bom espírito crítico não deixou de lhe lembrar, nenhuma parte daquele dia parecia de resto explicável com os dados que aquilo que se supunha realidade oferecia até agora.
– Portanto deixem-me ver se eu entendo: isto da Terra não passa de uma grande história inventada por uns quantos artistas agora, que perderam todos a inspiração, ela termina, assim, sem mais nem menos, nem sequer um E viveram felizes para sempre?
– Bom, sim, podemos por a questão nesses termos…
– Mas e então e aventuras, hã, aventuras? Têm a certeza que isto é o melhor que conseguem fazer?... Romance, tentaram o amor? Nunca se torna repetitivo o amor… Um confronto talvez! Um confronto duro, brutal, lendário, por causas! Não?

Como resposta recebia apenas negativos acenos de cabeça. Homero esticou a mão e agarrou um pedaço de nada. Depois olhou o céu. O dia nunca se apagaria agora. Nenhuns lábios se voltariam a beijar. Nenhumas palavras se voltariam a encontrar. Homero sentiu-se perdido. A partir desse dia decidiu deixar a escrita e dedicar-se ao sonho.

terça-feira, agosto 2

A paragem

Um dia parei, à berma de uma estrada qualquer. Pensei, todas as estradas são uma qualquer. Depois pensei, não me lembro do dia em que comecei a viajar. Eu não era propriamente um viajante: o viajante, mesmo que não tenha um ponto de partida preciso tem sempre um local de chegada definido. Acreditava eu então que viajava pelo prazer de viajar, mas naquele dia, em que parei à berma de uma estrada qualquer, apercebi-me de que não era bem assim. Só quando nos esquecemos do príncipio e do meio das coisas sem fim é que temos noção de que, afinal, talvez nem gostemos delas.
Deitei-me num pedaço de relva e comecei a tentar lembrar-me. Foi nessa altura que descobri uma coisa assustadora: não me lembrava de nada. Procurei na carteira mas não havia uma fotografia, um papel rabiscado, um bilhete que marcasse o local de partida. Chamaram-me muita coisa ao longo da vida mas, neste momento preciso, nada do que me chamaram se parece com o meu nome.
Estava perpetuamente preso num mundo estrangeiro, pensei. Por mais que procurasse, por mais que viajasse, não encontrava a minha língua, a minha família, os meus amigos. É assim que nos perdemos.
Deitado num pedaço de relva vi o sol extinguir-se e espelhar-se na lua. Procurava nas estrelas uma explicação, um sentido. Naquela noite nem as palavras faziam sentido. Sozinhas pareciam não existir e por mais que as tentasse juntar apareciam-me sempre desconexas, absurdas. Tentei dormir, mas os meus olhos não se fecharam. Decidi-me a ficar à espera.
Ela apareceu, como se fosse a lua, ou um pedaço de noite. Disse:
– Aqui é o teu lar.
Não percebi o que ela quis dizer, mas naquele momento o entendimento pareceu-me muito pouco importante.