biografia de alguém famoso
Havia outras pessoas na sala de espera, sentadas em cadeiras de plástico verdes sobre ladrilhos rombos, pretos e brancos. Havia um relógio redondo e um ponteiro grande que avançava setenta segundos por minuto, defeito de há muitos anos, vá-se lá saber quando tinha avariado. Havia pessoas que atravessavam os corredores com caras pesadas, haviam gritos que vinham das salas de parto.
Que seja menino, pensou ele. Acendeu mais um cigarro, segurou entre os dedos que tremiam, soprou uma núvem de fumo e nicotina. Desculpe senhor, mas não pode fumar aqui dentro. Ele olhou, viu a senhora da recepção, olhos nos olhos. As palavras ressoaram-lhe na cabeça, como se estivesse de ressaca. Ele olhou-a.
Não era alta nem baixa, os cabelos se naturais teriam madeixas grisalhas, mas estava pintado de castanho, experimentava uma nova dieta todas as semanas, começava às segundas, desistia às terças, tinha dedos gordos e brancos, tinha uma face rechonchuda e branca, tinha um olhar magro e castanho com que olhava pessoas nos olhos e lhes dizia, Desculpe senhor, mas não pode fumar aqui dentro, e depois ficava a olhar as pessoas nos olhos porque elas não respondiam e depois lembrava-as, com uma voz impaciente, Já disse que não pode fumar aqui dentro, e voltava para dentro, Pessoas que fumam em salas de espera por amor de Deus, estou farta de pessoas que fumam e de salas de espera.
Ele olhou-a e depois olhou o nada que ficou quando ela saiu da sala, a parede branca e áspera. Levantou-se, saiu, lá fora havia o vento e a chuva, e ele apagou o cigarro numa poça de água e ficou a olhar as nuvens cinzentas e carregadas que tanto podiam ser um mau presságio como apenas nuvens cinzentas e carregadas. A cidade, erguendo-se encosta acima, era luzes que se perdiam na manta escura da noite. E ali maldizeu todas as esperas e todas as pessoas e todas as noites, e algumas outras malditas coisas.
Voltou para dentro com o cabelo e a gabardina molhados, os sapatos molhados, a paciência pingando gota a gota sobre o chão frio e calado. Havia outras pessoas na sala de espera, estavam todas sentadas, excepto aquele que, quando presenta ocupava a segunda cadeira a contar da esquerda, que ia à casa de banho de cinco em cinco minutos. Havia um relógio que aponta as dez horas e os trinta e seis minutos, quando na verdade são só quatro e dezanove, agora que falo nisso era um relógio que talvez fosse quadrado. Haviam corredores vazios e depois alguém que entrava e trazia uma grávida numa maca, aos gritos e as levava para uma das salas, e depois havia corredores vazios outra vez, corredores que nunca tinham silêncio nem sossêgo e se enchiam de brados sofridos.
Merda, disse entredentes, depois disse Merda, foi a mesma coisa mas não foi a mesma coisa porque o disse mais alto e toda a gente olhou para ele. Esperava em pé, encostado a uma parede. A parede era fria, mas era como se fosse quente e era melhor do que se não fosse nada, era um apoio e era o seu único apoio, que não aquece nem arrefece.
Hora após hora após hora, esteve ali em pé, encostado à parede. Até o manco ponteiro dos minutos andava, ao seu ritmo próprio e lento, mas andava, coxeando de número a número. Um a um, foram-se os esperadores, o último foi o da casa de banho, outros vieram. As cadeiras verdes e de plástico eram sempre as mesmas, os ladrilhos eram sempre os mesmos. Ele sentou-se por fim, mas não por muito tempo. A enfermeira apareceu na sala e chamou o seu nome e ele saltou e caminhou até à sala, as pernas tremendo-lhe e parcamente sustentando-o na posição vertical, proeza que o hominídeo nunca mais quis deitar fora, depois de alcançar pela primeira vez.
Apertou a mão direita da mulher, ela tinha os olhos húmidos de lágrimas, ele apertou a mão dela e perguntou É menina, com um secreto desejo de que não fosse, e ela disse, É menino, e ele sorriu, ela então sorriu também, mas era um sorriso triste, O que foi?, e ela disse, numa voz trémula, como a luz de uma vela acendida na noite ventosa que lá fora se tornava dia, Não tem braços, e ele olhou o filho, e pegou-lhe, e disse Não tem braços, e teve medo, e sentiu horror da criança. Teve tanto medo que no dia seguinte a mulher não o encontrou na cama, e na cama nunca mais o encontrou, um dia no metro, dezasseis anos depois, teve quase a certeza que era dele aquela face entre a multidão da hora de ponta, aquela que o olhava assustado, mas essas suspeitas nunca pôde confirmar.
A carreira de celebridade do filho começou uma semana depois, apareceu numa reportagem da TVI, depois cresceu e dedicou-se à música, tornou-se uma estrela internacional, aplaudido pelos fãs e nas boas graças da crítica, mesmo a mais exigente. Deixou a mãe a viver numa mansão mas ainda a vem visitar uma vez por mês, que a fama não lhe fez mossa ao ego simples, e até lhe comprou um automóvel novo como o pai veio a saber pelos jornais.
Que seja menino, pensou ele. Acendeu mais um cigarro, segurou entre os dedos que tremiam, soprou uma núvem de fumo e nicotina. Desculpe senhor, mas não pode fumar aqui dentro. Ele olhou, viu a senhora da recepção, olhos nos olhos. As palavras ressoaram-lhe na cabeça, como se estivesse de ressaca. Ele olhou-a.
Não era alta nem baixa, os cabelos se naturais teriam madeixas grisalhas, mas estava pintado de castanho, experimentava uma nova dieta todas as semanas, começava às segundas, desistia às terças, tinha dedos gordos e brancos, tinha uma face rechonchuda e branca, tinha um olhar magro e castanho com que olhava pessoas nos olhos e lhes dizia, Desculpe senhor, mas não pode fumar aqui dentro, e depois ficava a olhar as pessoas nos olhos porque elas não respondiam e depois lembrava-as, com uma voz impaciente, Já disse que não pode fumar aqui dentro, e voltava para dentro, Pessoas que fumam em salas de espera por amor de Deus, estou farta de pessoas que fumam e de salas de espera.
Ele olhou-a e depois olhou o nada que ficou quando ela saiu da sala, a parede branca e áspera. Levantou-se, saiu, lá fora havia o vento e a chuva, e ele apagou o cigarro numa poça de água e ficou a olhar as nuvens cinzentas e carregadas que tanto podiam ser um mau presságio como apenas nuvens cinzentas e carregadas. A cidade, erguendo-se encosta acima, era luzes que se perdiam na manta escura da noite. E ali maldizeu todas as esperas e todas as pessoas e todas as noites, e algumas outras malditas coisas.
Voltou para dentro com o cabelo e a gabardina molhados, os sapatos molhados, a paciência pingando gota a gota sobre o chão frio e calado. Havia outras pessoas na sala de espera, estavam todas sentadas, excepto aquele que, quando presenta ocupava a segunda cadeira a contar da esquerda, que ia à casa de banho de cinco em cinco minutos. Havia um relógio que aponta as dez horas e os trinta e seis minutos, quando na verdade são só quatro e dezanove, agora que falo nisso era um relógio que talvez fosse quadrado. Haviam corredores vazios e depois alguém que entrava e trazia uma grávida numa maca, aos gritos e as levava para uma das salas, e depois havia corredores vazios outra vez, corredores que nunca tinham silêncio nem sossêgo e se enchiam de brados sofridos.
Merda, disse entredentes, depois disse Merda, foi a mesma coisa mas não foi a mesma coisa porque o disse mais alto e toda a gente olhou para ele. Esperava em pé, encostado a uma parede. A parede era fria, mas era como se fosse quente e era melhor do que se não fosse nada, era um apoio e era o seu único apoio, que não aquece nem arrefece.
Hora após hora após hora, esteve ali em pé, encostado à parede. Até o manco ponteiro dos minutos andava, ao seu ritmo próprio e lento, mas andava, coxeando de número a número. Um a um, foram-se os esperadores, o último foi o da casa de banho, outros vieram. As cadeiras verdes e de plástico eram sempre as mesmas, os ladrilhos eram sempre os mesmos. Ele sentou-se por fim, mas não por muito tempo. A enfermeira apareceu na sala e chamou o seu nome e ele saltou e caminhou até à sala, as pernas tremendo-lhe e parcamente sustentando-o na posição vertical, proeza que o hominídeo nunca mais quis deitar fora, depois de alcançar pela primeira vez.
Apertou a mão direita da mulher, ela tinha os olhos húmidos de lágrimas, ele apertou a mão dela e perguntou É menina, com um secreto desejo de que não fosse, e ela disse, É menino, e ele sorriu, ela então sorriu também, mas era um sorriso triste, O que foi?, e ela disse, numa voz trémula, como a luz de uma vela acendida na noite ventosa que lá fora se tornava dia, Não tem braços, e ele olhou o filho, e pegou-lhe, e disse Não tem braços, e teve medo, e sentiu horror da criança. Teve tanto medo que no dia seguinte a mulher não o encontrou na cama, e na cama nunca mais o encontrou, um dia no metro, dezasseis anos depois, teve quase a certeza que era dele aquela face entre a multidão da hora de ponta, aquela que o olhava assustado, mas essas suspeitas nunca pôde confirmar.
A carreira de celebridade do filho começou uma semana depois, apareceu numa reportagem da TVI, depois cresceu e dedicou-se à música, tornou-se uma estrela internacional, aplaudido pelos fãs e nas boas graças da crítica, mesmo a mais exigente. Deixou a mãe a viver numa mansão mas ainda a vem visitar uma vez por mês, que a fama não lhe fez mossa ao ego simples, e até lhe comprou um automóvel novo como o pai veio a saber pelos jornais.