quarenta aniversários
Abri os olhos lentamente, como se não quisesse ver.
Quando eu desperto de uma noite sem sonhos nunca sei quem sou, nem onde estou, nem o que é o mundo. É como nascer outra vez. Estava escuro e quente e confortável, e depois, a pouco e pouco, a realidade atraiu-me e persuadiu-me os sentidos. Quando abri os olhos só vi o tecto branco, por isso fechei-os outra vez e estiquei a minha mão direita e tacteei o tampo da mesa de cabeceira, pús os óculos e começo a lembrar-me do dia de ontem.
Naquele dia acordei súbitamente com quarenta anos. No dia anterior tinha trinta e nove. É o problema com os aniversários. Andamos um ano inteiro a dizer que temos trinta e nove anos (ainda no outro dia, ao telefone:
– Pode, por favor responder aqui a umas perguntinhas? É um inquérito anónimo... ,
– Sim, sim, diga lá,
– Pode começar-me por dizer a idade, se faz favor) e nem nos vamos apercebendo que envelhecemos dia após dia, despertar após despertar. E quando acordamos já não temos trinta e tais, temos quarenta. É como se tivesse envelhecido dez anos em apenas um dia.
A festa de aniversário não teve história; no restaurante do costume, os convidados do costume. Um bolo de morangos com chantilly e duas velas ao centro, uma com um 4 outra com um 0. Parabéns a Você. Palmas. Depois soprei as velas. Da pimeira vez que apaguei todas as velas do bolo de um só sopro apaguei seis velas. Estava orgulhoso e olhei a minha mãe nos olhos, sorrindo o maior dos meus sorrisos e disse
– Viste, mamã, viste? Apaguei as velas todas com só um sopro! Viste?
e ela, sempre compreensiva, afagando-me a cabeça, murmurou passivamente, enquanto me devolvia o olhar com os seus olhos tão mais velhos e sabidos que os meus,
– Sim, filho, muito bem filho, apagaste todas de uma vez só, já és grande...
Trinta e quatro anos depois apaguei duas velas, duas apenas, e foi como se fossem cem ou nenhuma; e os meus olhos, tão mais velhos e sabidos do que aqueles de há trinta e quatro anos atrás, focavam metade de um morango. Não tenho a certeza de ter sido uma festa deprimente, apesar dos comensais me terem constantemente recordado de como o tempo passa e desejado boa sorte na minha nova vida de quarentão. Mas no dia seguinte, ou, antes, naquele dia em que a história principia, senti sobre mim toda a ressaca de ter, inesperadamente, acordado uma década inteira mais velho. E senti também um vazio estranho. Não era a primeira vez. Decidi não me dar demasiado tempo para pensar. A infelicidade é uma dúvida permanente. A única forma de a evitar é não só não lhe responder mas nem sequer ouvir a pergunta.
Decidi ir dar um passeio depois da taça matinal de Corn Flakes, para esquecer o assunto de vez. Meio do mês de Maio. É domingo, as lojas estão fechadas. Eram onze da manhã. Estavam trinta graus e as pessoas moviam-se lentamente, para cima e para baixo nas ruas, carregando sacos de pão ou jornais debaixo do braço. Os automóveis são efémeros, passam simplesmente. E havia um homem, um só, sentado numa cadeira na esplanada do outro lado da rua. Tinha uma camisa de meia manga às riscas verticais azuis e amarelas, uma bóina beige sob a face rectangular, e óculos quadrados de ares castanhas pousados no nariz ligeiramente adunco. Tinha setenta, oitenta anos. Quem sabe. Era o único ser estático entre a cidade cinética, em que todos se moviam alteravam.
– Posso ajudá-lo?
De repente estava eu ali, de pé, em frente àquele homem tão parado que se sentava numa cadeira de esplanada. E senti o calor, não o que vinha de fora mas o que vinha de dentro de mim, eu a ruborescer, a flamejar, como quando em criança gritavam comigo sem que eu soubesse porquê, sabendo apenas que estava errado. Antes era tão mais fácil distinguir o certo do errado...
Disse apenas
– Sim.
e sentei-me. Estava certamente à espera que o interlocutor arregalasse os olhos, que uma das rugas da sua testa se entreolhasse, que as pestanas e os lábios se retorcessem de espanto. Mas pelo ar dele já devia ter visto muito neste mundo. Fez-me apenas sinal de que falasse. E eu falei.
– Tenho quarenta anos. Desde ontem. Não dei por nada, aconteceu de repente. E já não sonho como antigamente. Acordo como se nascesse sempre de novo, mas quando penso nisso apercebo-me de que não é verdade, já nasci há muito tempo, há quarenta anos e um dia para ser preciso. Mas é como se a vida ainda não tivesse começado, sabe? Um vazio, um vazio... Olho para trás a minha vida e ela não é nada. Já não sonho como antigamente, já deixei de sonhar, as minhas noites são só negras e só noites, não são nada. Já não sonho porque os sonhos não dão em nada. Não sei...
Pausa. Apercebi-me das minhas mãos que ora puxavam ora afastavam o cinzeiro de plástico verde que está em cima da mesa.
– Não sei porquê... A vida não foi nada do que eu planeei... Não me lembro do que é que eu planeei, nem tão pouco sei se alguma vez planeei alguma coisa, mas se o fiz, ou mesmo se não o fiz, não foi isto que planeei... Antes eu tinha sonhos. Não faziam muito sentido, mas pelo menos tinha sonhos. Hoje acordo e não tenho nada. Hoje acordo e preciso... de... de me encontrar a mim mesmo, sim, talvez seja disso que preciso.
– Certos homens encontram-se melhor no silêncio.
E depois ele, o silêncio. O silêncio era quente e abafado, ou talvez fosse o ar, mas os dois confundiam-se. O silêncio era também o zumbido de uma mosca, um automóvel a ir abaixo, alguém no cimo da rua a gritar atrás de alguém abaixo da rua, o silêncio era um azulejo, azul e branco.
– Certos homens. Alguns homens. Podemos encontrar-nos nos lugares mais estranhos. Às vezes viramos a esquina e encontramo-nos connosco próprios.
– Talvez sim. Mas eu não quero esperar mais quarenta anos por nada. Assim acabava como... Não sei...
– Como eu.
– Bom...
Talvez por me ter súbitamente apercebido de que era a uma pessoa e não a uma estátua que me dirigia, que tomei finalmente consciência da estranheza, ou antes da bizarria – digamo-lo com as letras todas – de discutir idades com uma pessoa de oitenta anos, quando eu próprio só tenho metade.
– Sim, sim, como eu. Não se acanhe. Eu compreendo-o. E o que pensa fazer?
Não fazia a mínima ideia. Mas ele compreendia-me.
– Não faço a mínima ideia. Talvez... Bom... Não sei. Se eu voltasse atrás e mudasse a minha vida. Mas isso é impossível, toda a gente sabe. Mas talvez possa mudar o que fiz de errado. Talvez possa pensar no que podia ter feito de diferente e fazê-lo...
– E fazê-lo?
– E fazê-lo de forma diferente. Agora. Começar de novo.
Ele tinha o cotovelo direito sobre a mesa, o punho da mão fechado e apoiando o queixo, o braço esquerdo estendido sobre o tampo, como a estátua de bronze d’O Pensador de Rodin. E ficámos assim durante um momento, talvez alguns segundos, talvez alguns minutos, o calor dilata o tempo, não o saberia dizer ao certo, ele olhando o infinito, eu olhando-o a ele.
– Talvez.
Nunca soube o que é o fim de uma conversa. Como todas as coisas as conversas têm fim. Vão-se esgotando a pouco e pouco. Mas eu nunca soube o que isso era. É tão mais fácil com a vida, por exemplo, que tem sintomas médicos específicos que caracterizam o fim; ou com os filmes, que sempre terminam com os créditos finais, para não falar das películas antigas que acabavam num ecrã negro com The End a letras brancas. Mas as conversas esvaziam-se sem que se perceba. Depois chegam os silêncios, daqueles tão perpétuos que entremeiam duas conversas diferentes. Ainda fiquei ali sentado por algum tempo. Depois levantei-me.
Parei a meio da passadeira. Olhei para trás. Já não havia nenhum homem no café. Senti-me estranho. Pensei que aquele velho ia sentar-se ali para sempre. Um carro buzinou. Eu estava parado no meio da passadeira.
Quando eu desperto de uma noite sem sonhos nunca sei quem sou, nem onde estou, nem o que é o mundo. É como nascer outra vez. Estava escuro e quente e confortável, e depois, a pouco e pouco, a realidade atraiu-me e persuadiu-me os sentidos. Quando abri os olhos só vi o tecto branco, por isso fechei-os outra vez e estiquei a minha mão direita e tacteei o tampo da mesa de cabeceira, pús os óculos e começo a lembrar-me do dia de ontem.
Naquele dia acordei súbitamente com quarenta anos. No dia anterior tinha trinta e nove. É o problema com os aniversários. Andamos um ano inteiro a dizer que temos trinta e nove anos (ainda no outro dia, ao telefone:
– Pode, por favor responder aqui a umas perguntinhas? É um inquérito anónimo... ,
– Sim, sim, diga lá,
– Pode começar-me por dizer a idade, se faz favor) e nem nos vamos apercebendo que envelhecemos dia após dia, despertar após despertar. E quando acordamos já não temos trinta e tais, temos quarenta. É como se tivesse envelhecido dez anos em apenas um dia.
A festa de aniversário não teve história; no restaurante do costume, os convidados do costume. Um bolo de morangos com chantilly e duas velas ao centro, uma com um 4 outra com um 0. Parabéns a Você. Palmas. Depois soprei as velas. Da pimeira vez que apaguei todas as velas do bolo de um só sopro apaguei seis velas. Estava orgulhoso e olhei a minha mãe nos olhos, sorrindo o maior dos meus sorrisos e disse
– Viste, mamã, viste? Apaguei as velas todas com só um sopro! Viste?
e ela, sempre compreensiva, afagando-me a cabeça, murmurou passivamente, enquanto me devolvia o olhar com os seus olhos tão mais velhos e sabidos que os meus,
– Sim, filho, muito bem filho, apagaste todas de uma vez só, já és grande...
Trinta e quatro anos depois apaguei duas velas, duas apenas, e foi como se fossem cem ou nenhuma; e os meus olhos, tão mais velhos e sabidos do que aqueles de há trinta e quatro anos atrás, focavam metade de um morango. Não tenho a certeza de ter sido uma festa deprimente, apesar dos comensais me terem constantemente recordado de como o tempo passa e desejado boa sorte na minha nova vida de quarentão. Mas no dia seguinte, ou, antes, naquele dia em que a história principia, senti sobre mim toda a ressaca de ter, inesperadamente, acordado uma década inteira mais velho. E senti também um vazio estranho. Não era a primeira vez. Decidi não me dar demasiado tempo para pensar. A infelicidade é uma dúvida permanente. A única forma de a evitar é não só não lhe responder mas nem sequer ouvir a pergunta.
Decidi ir dar um passeio depois da taça matinal de Corn Flakes, para esquecer o assunto de vez. Meio do mês de Maio. É domingo, as lojas estão fechadas. Eram onze da manhã. Estavam trinta graus e as pessoas moviam-se lentamente, para cima e para baixo nas ruas, carregando sacos de pão ou jornais debaixo do braço. Os automóveis são efémeros, passam simplesmente. E havia um homem, um só, sentado numa cadeira na esplanada do outro lado da rua. Tinha uma camisa de meia manga às riscas verticais azuis e amarelas, uma bóina beige sob a face rectangular, e óculos quadrados de ares castanhas pousados no nariz ligeiramente adunco. Tinha setenta, oitenta anos. Quem sabe. Era o único ser estático entre a cidade cinética, em que todos se moviam alteravam.
– Posso ajudá-lo?
De repente estava eu ali, de pé, em frente àquele homem tão parado que se sentava numa cadeira de esplanada. E senti o calor, não o que vinha de fora mas o que vinha de dentro de mim, eu a ruborescer, a flamejar, como quando em criança gritavam comigo sem que eu soubesse porquê, sabendo apenas que estava errado. Antes era tão mais fácil distinguir o certo do errado...
Disse apenas
– Sim.
e sentei-me. Estava certamente à espera que o interlocutor arregalasse os olhos, que uma das rugas da sua testa se entreolhasse, que as pestanas e os lábios se retorcessem de espanto. Mas pelo ar dele já devia ter visto muito neste mundo. Fez-me apenas sinal de que falasse. E eu falei.
– Tenho quarenta anos. Desde ontem. Não dei por nada, aconteceu de repente. E já não sonho como antigamente. Acordo como se nascesse sempre de novo, mas quando penso nisso apercebo-me de que não é verdade, já nasci há muito tempo, há quarenta anos e um dia para ser preciso. Mas é como se a vida ainda não tivesse começado, sabe? Um vazio, um vazio... Olho para trás a minha vida e ela não é nada. Já não sonho como antigamente, já deixei de sonhar, as minhas noites são só negras e só noites, não são nada. Já não sonho porque os sonhos não dão em nada. Não sei...
Pausa. Apercebi-me das minhas mãos que ora puxavam ora afastavam o cinzeiro de plástico verde que está em cima da mesa.
– Não sei porquê... A vida não foi nada do que eu planeei... Não me lembro do que é que eu planeei, nem tão pouco sei se alguma vez planeei alguma coisa, mas se o fiz, ou mesmo se não o fiz, não foi isto que planeei... Antes eu tinha sonhos. Não faziam muito sentido, mas pelo menos tinha sonhos. Hoje acordo e não tenho nada. Hoje acordo e preciso... de... de me encontrar a mim mesmo, sim, talvez seja disso que preciso.
– Certos homens encontram-se melhor no silêncio.
E depois ele, o silêncio. O silêncio era quente e abafado, ou talvez fosse o ar, mas os dois confundiam-se. O silêncio era também o zumbido de uma mosca, um automóvel a ir abaixo, alguém no cimo da rua a gritar atrás de alguém abaixo da rua, o silêncio era um azulejo, azul e branco.
– Certos homens. Alguns homens. Podemos encontrar-nos nos lugares mais estranhos. Às vezes viramos a esquina e encontramo-nos connosco próprios.
– Talvez sim. Mas eu não quero esperar mais quarenta anos por nada. Assim acabava como... Não sei...
– Como eu.
– Bom...
Talvez por me ter súbitamente apercebido de que era a uma pessoa e não a uma estátua que me dirigia, que tomei finalmente consciência da estranheza, ou antes da bizarria – digamo-lo com as letras todas – de discutir idades com uma pessoa de oitenta anos, quando eu próprio só tenho metade.
– Sim, sim, como eu. Não se acanhe. Eu compreendo-o. E o que pensa fazer?
Não fazia a mínima ideia. Mas ele compreendia-me.
– Não faço a mínima ideia. Talvez... Bom... Não sei. Se eu voltasse atrás e mudasse a minha vida. Mas isso é impossível, toda a gente sabe. Mas talvez possa mudar o que fiz de errado. Talvez possa pensar no que podia ter feito de diferente e fazê-lo...
– E fazê-lo?
– E fazê-lo de forma diferente. Agora. Começar de novo.
Ele tinha o cotovelo direito sobre a mesa, o punho da mão fechado e apoiando o queixo, o braço esquerdo estendido sobre o tampo, como a estátua de bronze d’O Pensador de Rodin. E ficámos assim durante um momento, talvez alguns segundos, talvez alguns minutos, o calor dilata o tempo, não o saberia dizer ao certo, ele olhando o infinito, eu olhando-o a ele.
– Talvez.
Nunca soube o que é o fim de uma conversa. Como todas as coisas as conversas têm fim. Vão-se esgotando a pouco e pouco. Mas eu nunca soube o que isso era. É tão mais fácil com a vida, por exemplo, que tem sintomas médicos específicos que caracterizam o fim; ou com os filmes, que sempre terminam com os créditos finais, para não falar das películas antigas que acabavam num ecrã negro com The End a letras brancas. Mas as conversas esvaziam-se sem que se perceba. Depois chegam os silêncios, daqueles tão perpétuos que entremeiam duas conversas diferentes. Ainda fiquei ali sentado por algum tempo. Depois levantei-me.
Parei a meio da passadeira. Olhei para trás. Já não havia nenhum homem no café. Senti-me estranho. Pensei que aquele velho ia sentar-se ali para sempre. Um carro buzinou. Eu estava parado no meio da passadeira.