quarta-feira, julho 26
sábado, junho 10
quarenta aniversários
Quando eu desperto de uma noite sem sonhos nunca sei quem sou, nem onde estou, nem o que é o mundo. É como nascer outra vez. Estava escuro e quente e confortável, e depois, a pouco e pouco, a realidade atraiu-me e persuadiu-me os sentidos. Quando abri os olhos só vi o tecto branco, por isso fechei-os outra vez e estiquei a minha mão direita e tacteei o tampo da mesa de cabeceira, pús os óculos e começo a lembrar-me do dia de ontem.
Naquele dia acordei súbitamente com quarenta anos. No dia anterior tinha trinta e nove. É o problema com os aniversários. Andamos um ano inteiro a dizer que temos trinta e nove anos (ainda no outro dia, ao telefone:
– Pode, por favor responder aqui a umas perguntinhas? É um inquérito anónimo... ,
– Sim, sim, diga lá,
– Pode começar-me por dizer a idade, se faz favor) e nem nos vamos apercebendo que envelhecemos dia após dia, despertar após despertar. E quando acordamos já não temos trinta e tais, temos quarenta. É como se tivesse envelhecido dez anos em apenas um dia.
A festa de aniversário não teve história; no restaurante do costume, os convidados do costume. Um bolo de morangos com chantilly e duas velas ao centro, uma com um 4 outra com um 0. Parabéns a Você. Palmas. Depois soprei as velas. Da pimeira vez que apaguei todas as velas do bolo de um só sopro apaguei seis velas. Estava orgulhoso e olhei a minha mãe nos olhos, sorrindo o maior dos meus sorrisos e disse
– Viste, mamã, viste? Apaguei as velas todas com só um sopro! Viste?
e ela, sempre compreensiva, afagando-me a cabeça, murmurou passivamente, enquanto me devolvia o olhar com os seus olhos tão mais velhos e sabidos que os meus,
– Sim, filho, muito bem filho, apagaste todas de uma vez só, já és grande...
Trinta e quatro anos depois apaguei duas velas, duas apenas, e foi como se fossem cem ou nenhuma; e os meus olhos, tão mais velhos e sabidos do que aqueles de há trinta e quatro anos atrás, focavam metade de um morango. Não tenho a certeza de ter sido uma festa deprimente, apesar dos comensais me terem constantemente recordado de como o tempo passa e desejado boa sorte na minha nova vida de quarentão. Mas no dia seguinte, ou, antes, naquele dia em que a história principia, senti sobre mim toda a ressaca de ter, inesperadamente, acordado uma década inteira mais velho. E senti também um vazio estranho. Não era a primeira vez. Decidi não me dar demasiado tempo para pensar. A infelicidade é uma dúvida permanente. A única forma de a evitar é não só não lhe responder mas nem sequer ouvir a pergunta.
Decidi ir dar um passeio depois da taça matinal de Corn Flakes, para esquecer o assunto de vez. Meio do mês de Maio. É domingo, as lojas estão fechadas. Eram onze da manhã. Estavam trinta graus e as pessoas moviam-se lentamente, para cima e para baixo nas ruas, carregando sacos de pão ou jornais debaixo do braço. Os automóveis são efémeros, passam simplesmente. E havia um homem, um só, sentado numa cadeira na esplanada do outro lado da rua. Tinha uma camisa de meia manga às riscas verticais azuis e amarelas, uma bóina beige sob a face rectangular, e óculos quadrados de ares castanhas pousados no nariz ligeiramente adunco. Tinha setenta, oitenta anos. Quem sabe. Era o único ser estático entre a cidade cinética, em que todos se moviam alteravam.
– Posso ajudá-lo?
De repente estava eu ali, de pé, em frente àquele homem tão parado que se sentava numa cadeira de esplanada. E senti o calor, não o que vinha de fora mas o que vinha de dentro de mim, eu a ruborescer, a flamejar, como quando em criança gritavam comigo sem que eu soubesse porquê, sabendo apenas que estava errado. Antes era tão mais fácil distinguir o certo do errado...
Disse apenas
– Sim.
e sentei-me. Estava certamente à espera que o interlocutor arregalasse os olhos, que uma das rugas da sua testa se entreolhasse, que as pestanas e os lábios se retorcessem de espanto. Mas pelo ar dele já devia ter visto muito neste mundo. Fez-me apenas sinal de que falasse. E eu falei.
– Tenho quarenta anos. Desde ontem. Não dei por nada, aconteceu de repente. E já não sonho como antigamente. Acordo como se nascesse sempre de novo, mas quando penso nisso apercebo-me de que não é verdade, já nasci há muito tempo, há quarenta anos e um dia para ser preciso. Mas é como se a vida ainda não tivesse começado, sabe? Um vazio, um vazio... Olho para trás a minha vida e ela não é nada. Já não sonho como antigamente, já deixei de sonhar, as minhas noites são só negras e só noites, não são nada. Já não sonho porque os sonhos não dão em nada. Não sei...
Pausa. Apercebi-me das minhas mãos que ora puxavam ora afastavam o cinzeiro de plástico verde que está em cima da mesa.
– Não sei porquê... A vida não foi nada do que eu planeei... Não me lembro do que é que eu planeei, nem tão pouco sei se alguma vez planeei alguma coisa, mas se o fiz, ou mesmo se não o fiz, não foi isto que planeei... Antes eu tinha sonhos. Não faziam muito sentido, mas pelo menos tinha sonhos. Hoje acordo e não tenho nada. Hoje acordo e preciso... de... de me encontrar a mim mesmo, sim, talvez seja disso que preciso.
– Certos homens encontram-se melhor no silêncio.
E depois ele, o silêncio. O silêncio era quente e abafado, ou talvez fosse o ar, mas os dois confundiam-se. O silêncio era também o zumbido de uma mosca, um automóvel a ir abaixo, alguém no cimo da rua a gritar atrás de alguém abaixo da rua, o silêncio era um azulejo, azul e branco.
– Certos homens. Alguns homens. Podemos encontrar-nos nos lugares mais estranhos. Às vezes viramos a esquina e encontramo-nos connosco próprios.
– Talvez sim. Mas eu não quero esperar mais quarenta anos por nada. Assim acabava como... Não sei...
– Como eu.
– Bom...
Talvez por me ter súbitamente apercebido de que era a uma pessoa e não a uma estátua que me dirigia, que tomei finalmente consciência da estranheza, ou antes da bizarria – digamo-lo com as letras todas – de discutir idades com uma pessoa de oitenta anos, quando eu próprio só tenho metade.
– Sim, sim, como eu. Não se acanhe. Eu compreendo-o. E o que pensa fazer?
Não fazia a mínima ideia. Mas ele compreendia-me.
– Não faço a mínima ideia. Talvez... Bom... Não sei. Se eu voltasse atrás e mudasse a minha vida. Mas isso é impossível, toda a gente sabe. Mas talvez possa mudar o que fiz de errado. Talvez possa pensar no que podia ter feito de diferente e fazê-lo...
– E fazê-lo?
– E fazê-lo de forma diferente. Agora. Começar de novo.
Ele tinha o cotovelo direito sobre a mesa, o punho da mão fechado e apoiando o queixo, o braço esquerdo estendido sobre o tampo, como a estátua de bronze d’O Pensador de Rodin. E ficámos assim durante um momento, talvez alguns segundos, talvez alguns minutos, o calor dilata o tempo, não o saberia dizer ao certo, ele olhando o infinito, eu olhando-o a ele.
– Talvez.
Nunca soube o que é o fim de uma conversa. Como todas as coisas as conversas têm fim. Vão-se esgotando a pouco e pouco. Mas eu nunca soube o que isso era. É tão mais fácil com a vida, por exemplo, que tem sintomas médicos específicos que caracterizam o fim; ou com os filmes, que sempre terminam com os créditos finais, para não falar das películas antigas que acabavam num ecrã negro com The End a letras brancas. Mas as conversas esvaziam-se sem que se perceba. Depois chegam os silêncios, daqueles tão perpétuos que entremeiam duas conversas diferentes. Ainda fiquei ali sentado por algum tempo. Depois levantei-me.
Parei a meio da passadeira. Olhei para trás. Já não havia nenhum homem no café. Senti-me estranho. Pensei que aquele velho ia sentar-se ali para sempre. Um carro buzinou. Eu estava parado no meio da passadeira.
segunda-feira, maio 8
olhos nos olhos
No príncipio, quando o céu era claro e ele ainda conseguia olhá-la de frente, tudo era mais fácil. No príncipio todos os ideais são claros e límpidos; são simples e directos. No príncipio ele lutava por eles, pelos ideais. Naquela altura já só lutava por si próprio.
Antes de desaparecer entre dois pedaços de cimento ele ainda procurou a cara dela, mas nunca mais a encontrou. Ela tinha fugido na outra direcção, à procura desse lugar a que chamam Fim. Em tempos mais pacíficos tinham-lhe ensinado que nesse lugar se vivia feliz para sempre. Enquanto corria ela olhava em frente. Para além da selva urbana decadente que caía em derrocada havia a cara dele perpetuamente presa ao céu infinitamente cinzento: a pele pálida e as bochechas rosadas, intensas, os lábios pequenos e bem desenhados, os olhos castanho claros últimamente tão cheios de medo.
Ele era um rapaz ainda. Dúvido que tivesse dezoito anos. Eu deixei de contar as idades quando aprendi que as vidas terminam. Com a arma tremendo nas mãos, apontada ao indistinto horizonte inimigo, por entre o fogo e o fumo, enquanto do céu os aviões lançavam morte e destruição, caminhava ele desorganizadamente, tropeçando nos corpos perdidos no meio da rua. E foi então que nos encontrámos, o nosso espanto toldado pelo susto. Se eu me tivesse visto reflectido na sua púpila grande e assustada veria a imagem dele. Se alguém nos visse ali os dois, frente a frente, a vinte metros de distância, não nos distinguiria. Se não estivéssemos ali os dois a rua estaria deserta. Por um momento ficámos ambos parados, ele na minha mira eu na dele, à espera do som da bala e do fim. Tinha a respiração suspensa, convencida ela própria de que iria ficar assim para todo o sempre.
Pressionei o gatilho mas não me mexi até que o corpo dele caiu e se perdeu numa poça de sangue. Foi como se o meu próprio corpo se vergasse à lei da morte. Como se aquele sangue fosse o meu sangue.
No príncipio ainda haviam ideais. A primeira bala perdida é suficiente para os ferir mortalmente. Extinguem-se em agonia, dobram-se sobre os joelhos, gritam de dor e calam-se para sempre.
Corri para casa, onde quer que isso fosse. Cai fatigado ao pé de um lago e a mão de uma rapariga levantou-me a cabeça e os olhos dela olharam os meus como se sempre me tivessem olhado.
domingo, abril 16
Um livro aberto ao acaso
Foi num daqueles dias de há muitos anos atrás, daqueles dias deinfância que nos vêm à memória com uma banda sonora melosa interpretada por uma orquestra de cordas, que Paulo viu a sua primeira poesia. Entrou na cozinha e viu o livro de setenta páginas esquecido no chão. Pegou-o com ambas as mãos, mãos pequenas como o corpo e como a idade. Abriu-o ao acaso e ainda hoje tem a certeza de que os livros de poesia foram escritos para serem abertos ao acaso.
Mas Paulo vivia então os seus primeiros anos, e ignorava ainda as potencialidades sonoras da letra escrita. Apaixonou-se sim foi pelo livro em si, pela forma das letras e pela disposição dos versos, pela textura do papel, pela capa dura, pela mancha amarela na página cinquenta e seis, produto de uma qualquer leitura negligente. Noutras camas deitavam-se meninos e meninas agarrados aos seus ursos depeluche, naquela dormia Paulo, abraçado ao seu livro de poesia.
Quando no primeiro ano de escola os colegas se albafetizavam com contos ilustrados de Christian Andersen que vinham no livro da escola, ele praticava lendo o livro de poesia que levava consigo para todo o lado. E lia as muitas palavras que não compreendia. E antes de inquirir da proveniência dos bebés Paulo perguntou, numa daquelas tardes em que a mãe o trazia da escola, Mãe, o que é o amor? E a mãe, que apenas estava preparada, e mal, para a pergunta da praxe, engasgou-se e olhou o céu, e a rua e os prédios e os automóveis estacionados em segunda fila e disse qualquer coisa sobre o amor ser uma semente que crescia e se tornava numa ave, que voava como as cegonhas e sonhavacom uma viagem a Paris.
Está claro que Paulo logo percebeu que o amor devia ser algo de mais complicado que uma semente que é uma cegonha que voa até Paris. Percebeu-o pela face lívida da mãe, e pela voz balbuciante. E nem a explicação que os dois progenitores, juntos, prepararam o melhor que souberam e lhe deram numa noite da semana seguinte o convenceu. Nem tão pouco o satisfez o dicionário, a que deu uso dois anos mais tarde. Foi construindo a sua própria definição, daqui e dali, lendo não sódas palavras, dos olhares e das melancolias dos outros mas também doseu próprio coração, que pulsava solitário e desesperado no corpoadolescente. E claro, lendo do seu livro também.
Era um livro de poesias que não rimavam. O amor nem sempre rima comalguma outra palavra, como Paulo veio a aprender. Tinha decorado olivro por inteiro. E apesar de tudo nunca deixou de gostar de o abrir ao acaso e ler os poemas que já conhecia. Cresceu sempre com aquele livro. Naquele dia estava guardado no porta luvas do Ford azul, aquele que Paulo comprou em segunda mão com os salários do seu primeiro emprego e com uma ajuda preciosa do rendimento do pai. Estacionou o automóvel à beira da praia, lá ao fundo o azul do mar e o do céufundiam-se um no outro.
Estava um dia de vento e não havia muita gente na praia. Ele descobriu-a facilmente. O longo cabelo esvoaçante, o olhar castanho cheio de palavras indíziveis. Naquele momento ele esqueceu todas as poesias do livro. E era como se tudo no mundo tivesse ganho sentido. Como se todas as coisas estivessem finalmente no lugar. Como se a poesia tivesse ganho corpo e saído da água, com os seus longos cabelos molhados.O que ele podia ter dito e não disse. A história que podia ter sido e não foi. Ele nunca vai saber porque é nunca leu aquela poesia que um dia apareceu ao acaso numa praia, como quem por acaso abre um livro. Mas soube naquele momento, enquanto o sol descia à altura do comum dos mortais e a praia se enchia de vazio que aquele tinha sido o maior erro da sua vida.
Até à próxima vez.
quinta-feira, março 30
o fim do príncipio
Existe um relógio quadrado na estação. Gosto muito mais dos relógios redondos. Era muito mais poético dizer que existe um relógio redondo na estação. Esqueçam lá a história do relógio quadrado, não havia na estação relógios quadrados. Era um relógio redondo e o ponteiro das horas apontava para as doze, o dos minutos estava quase sobre o cinco, e o dos segundos caminhava incessantemente e sem destino, tiquetaque, tiquetaque. Parece que o tempo dura uma eternidade.
Este homem que está aqui na estação tem um casaco preto, formal, uma gravata azul, uma camisa branca. Está aqui, parado, à espera que finalmente comece alguma coisa. Que chegue um comboio, com barulhos de motor, ruídos de locomoção. A bem dizer a história só devia começar quando o comboio cá chegasse. Está ali um personagem, pronto a entrar num comboio, sem destino que se adivinhe. E o comboio não chega, a história não começa. O homem está a perder a paciência, se não aparece nada guinchando sobre aqueles carris ali nos próximos tempos ele é bem capaz de ir a uma outra história qualquer.
Às vezes acontece uma destas cenas enfastiantes. Não me resta grande coisa a não ser falar de relógios redondos. O homem está a começar irritado. Pelo olhar ameaçador, em chegando o supracitado transporte, este texto é bem capaz de se tornar um policial. Não existe mais ninguém na estação e está um sol abrasador, o homem suando debaixo de casaco e camisa e gravata. Quem é que aqui o foi enfiar, envergando casaco e camisa e gravata. Se calhar era melhor usar apenas uma t-shirt, roupa casual.
Estou a começar a entrar em estado de desespero.
Começam a chegar mais pessoas à estação. Um casal de namorados, de mão dada, descendo as escadas para a plataforma sem pressas, olhando-se um ao outro, beijando-se um ou outro de poucos em poucos metros. Um jovem adulto, alto e esguio e pálido, ligeiramente curvado para a frente, com olhos negros, olhos que já não se descaem profundamente em sonos há pelo menos três dias. Uma família inteira, um rapaz de cinco anos com um boné ligeiramente descaído para o lado, uma rapariga de dez com um aparelho nos dentes e tédio na face, um pai e uma mãe de mãe idade, carregados de malas, uma castanha, outra azul, mais algumas mochilas, e ainda um canário amarelo dentro de uma gaiola dourada. Vá-se lá saber o que faz um casal de namorados, um jovem com olhos carregados de vigílias, uma família média e um canário na mesma história.
Há um comboio lá ao fundo. Eu sei porque já vi muitos comboios chegar. Esta é a trigésima sexta vez que começo uma história com homens que esperam por comboios em estações com relógios redondos. O que me leva a pensar que, em abono da originalidade, se calhar o relógio devia ser quadrado. Os últimos trinta e seis enredos perderam-se sem entrar no comboio. É sintomático e leva-me a pensar que talvez as conclusões não sejam tão simples assim. Mas os finais são certamente. Qualquer começo tem o seu final, quer seja ou não Casaram-se e viveram felizes para sempre.
O homem da história, aquele que pensava que os começos são sempre complicados, esse é que já não está aqui. De entre os que aqui estão à espera de comboios não existe nenhum que pense que os começos são complicados.
Esta é a explicação para que eu agora ande aqui a correr escada acima, a sair da estação e a entrar no centro comercial, procurando entre a multidão de comerciantes, consumidores e simples transeuntes, todos simples figurantes, diga-se de passagem, à procura de um homem que vista casaco preto, camisa branca e gravata azul. Vejo-o num restaurante fast food mexicano, com os seus olhos fixos nos olhos verdes de uma mulher em vestido vermelho dizendo, Por favor, vem comigo, não posso partir sem ti.
terça-feira, março 21
Solidão
O som dos seus passos resoou dentro do seu corpo, que não era corpo, era uma casa vazia.
Era só o som dos seus passos e o silêncio.
A última porta à esquerda de quem entrava, era a porta do seu quarto. A porta à frente dele era a porta do seu quarto. Bateu na porta de madeira com os nós dos dedos, cerrados num punho. Perguntou, Está aí alguém?
Abriu a porta. Sentou-se na borda da cama. Fechou os olhos.
Não estava ninguém.
sexta-feira, março 10
Coisas Simples 7
Era noite e estava frio lá fora. Não haviam nuvens no céu. Se não fossem estas luzes, que ladeiam a rua de ambos os lados, que estão nos faróis dos automóveis que vão e dos que chegam e dos que continuam a vaguear sem destino, e também as que iluminam os placares publicitários, se não fossem essas luzes o céu estaria estrelado. Talvez a história fosse outra, pensou um homem de calças de ganga, e camisola negra, de algodão. O cabelo curto e os olhos eram também negros. Eram olhos sem estrelas, como o céu sobre a cidade. Tinha umas salientes maçãs do rosto, uma face magra e lívida, como se sugada por forças ínvisiveis. A barba estava por fazer. Nos lábios, duas linhas ténues que eram como se não existissem, um cigarro extinguia-se.
O homem fechou os olhos e depois expirou o fumo e depois abriu os olhos e viu o prédio. Parou de chover. Era agora, não valia a pena esperar mais. Quando, em noites como esta, se encontrava completamente sóbrio, sentia sempre receio de qualquer coisa que não sabia bem o que era. E olhava bem, e certificava-se várias vezes que estava completamente só. E às vezes quase desejava não estar só. O que era um erro, obviamente. Pensou nisso e arrumou a questão. O olhar duro preso ao prédio do outro lado da rua.
Havia um vento frio que às vezes soprava com força e abanava as copas das árvores. Na mão direita o homem tinha uma mala negra. Uma mala que podia conter qualquer coisa. Abriu-a com um simples movimento coordenado das suas duas mãos, como se já a tivesse abrido muitas vezes. A primeira coisa que tirou foi um par de luvas negras.
Sentiu a adrenalina crescer e sorriu. Gostava daquilo. Tinha completo domínio do movimento do seu corpo, do movimento dos seus dedos magros calçando as luvas negras, envolvendo a pega da mala negra. Nestes momentos gostava do desafio da situação, da incerteza do fúturo, em contraste com o total controlo que tinha de si próprio. A adrenalina vencia sempre sobre o seu medo e sobre a sua moral. Quando era pequeno costumava acreditar no pai Natal, embora ele nunca lhe tivesse trazido o que ele pedira. Até aos seis anos acreditou em Deus, até começar a fazer de tudo para não ter que ir à catequese aos sábados de manhã. Até aos oito anos ainda acreditou na mãe. Mas nunca acreditou na moral.
Nunca percebeu porque é haviam coisas que eram boas e coisas que eram más. Porque não eram simplesmente coisas. Porque é que as pessoas faziam o que lhe diziam que era mau e o obrigavam a actuar segundo o que lhe diziam que era bom. Ele tinha a sua própria consciência das coisas. As coisas, as coisas verdadeiras, como o céu e a chuva, são coisas complicadas. A moral é, simplesmente, demasiado simples para as coisas.
Mas ele não pensava nisto. Ele agora não queria pensar nisto. Sentia uma energia própria destas ocasiões brotar-lhe no corpo. Agora não tinha sombras, não tinha temores que o apagavam na escuridão. Tinha apenas um objectivo. Concreto e simples. Sólido. Sabia exactamente o que tinha a fazer.
Atravessou a estrada com passos firmes e largos. Pôs o joelho direito no chão, a flectiu a perna esquerda. Abriu a mala negra. Nela estava tudo o que precisava. Concentrou os seus dois olhos negros no buraco da fechadura.