quarta-feira, abril 20

Norge

Ele pensava que já tinha visto tudo ali, e que ali não havia mais nada a ver. Pensava assim há já algum tempo, quando decorou todas as pedras da calçada, quando começou a desenhar de cabeça a trajectória curvilínea da estrada, quando sabia o número de lugares de estacionamento e memorizou as matrículas de todos os automóveis que customavam passar por ali; conhecia as cores do céu no príncipio do dia, no fim da tarde, nas noites de lua cheia e de lua nova. Assim, aquele local, de que era prisioneiro por estranhos caprichos de um certo narrador, apresentava-se-lhe como o mais enfastiante dos lugares, por ser facilmente memorizável.

Realmente conhecia tudo naquela rua; sabia até retratar perfeitamente as feições de um homem velho que por vezes passava as suas tardes sentado num banco verde, de madeira. Conhecia até a sua voz, sem nunca ter conversado com ela. Naquele dia decidiu-se, e aproximou-se do idoso, e interpelou-o, e disse-lhe:
- Não há nada de novo aqui.

O velho sorriu, um sorriso triste e gasto, mas aberto e franco, respondeu-lhe:
- Sobe para aqui para cima do banco. Estás a ver, talvez, daí, um ninho, lá ao fundo?

Não teve outra hipótese senão admitir vê-lo e desconhecê-lo. E o velho tornou:
- Tu nem a ti te conheces quanto mais esta rua!

Então, pela primeira vez, pensei de mim para comim que talvez não fosse personagem mas escritor, e que talvez seja eu que me prendo a esta rua limitada pelo meu olhar limitado. Olhei a rua de novo e, súbitamente, tudo me era estranho e diferente...

Nada a dizer

sábado, abril 2

Uma palavra apenas

Era uma vez um escritor.

Olhou pela janela: a cidade estende-se pela rua larga em que frutificam os vendedores ilegais, com a sua mercadoria estendida sobre grandes lenços azuis, vermelhos, amarelos, cada um vendendo o que tem para vender. Os turistas regateiam os preços, depois sorriem e pagam, ou desviam-se simplesmente. A tarde está velha, quase noite, e o sol está com sono. Ao escritor tudo naqueles rostos, naqueles gestos, naquelas palavras quase gritadas lhe lembrava a perfeição das imperfeições.

À sua frente o escritor tinha uma folha em branco, completamente em branco. Foram assim os grandes romances clássicos antes de serem escritos. Era um escritor que gostava de escrever à mão, com a sua habitual caneta, companheira fiel de tantas e tantas obras. Era escritor de muitos êxitos. O seu último livro já ía na segunda tiragem, ao fim de menos de dois meses: dezasseis mil exemplares tinham sido ontem entregues nas livrarias. Mas este escritor aspirava a algo mais: queria escrever o livro dos livros, o livro final, aquele que tem nele escrito tudo o que precisa de ser escrito, aquele que esgota todas as mensagens. Sonhara com esse livro toda a sua vida, e tinha já completado setenta e seis anos sem o conseguir escrever. Olhou novamente o sol caindo sobre a linha do horizonte e soube imediatamente que era naquele dia que o ia fazer.

Corajosamente olhou a folha, lívida, aterrorizada, temendo já a tinta que mancharia a sua alva brancura. Depois pegou na caneta, concentrou-se. Na sua cabeça ferviam ideias, emoções, retalhos de livros que leu ou estava para ler ou escreveu. Sabia finalmente o que tinha que escrever.

O seu livro rei de todos os outros tinha apenas uma palavra; tudo o mais eram folhas completamente vazias, em branco. Mas ele sentia-se finalmente feliz e completo. Tinha escrito a maior obra de todas as obras.

Viveu feliz para sempre; morreu uma hora depois.