quarta-feira, julho 20

A minha avó era uma bailarina

Maria pousa a mão sobre o mármore frio da bancada da cozinha. O ar está cheio de aromas quentes e doces. No forno o bolo de laranja cresce, torna-se esponjoso e apetitoso. Maria retira-o usando uma apenas a mão que protege com a pega. Estamos no Outono – pela janela observam-se as cores, quentes e nostálgicas como o olhar de um velho preso ao passado. Maria senta-se num banco de madeira e descansa a cabeça contra a parede, e deixa-se ficar naquele estado de letargia que está entre o dormir e o permanecer acordado. A engrenagem da memória é uma coisa complicada: tanto pode estar bem oleada e engatar facilmente como principiar morosamente a rebuscar episódios mais ou menos distantes, que até podem parecer pertencer a outras vidas. Com as pálpebras cerradas, Maria começa a lembrar-se, de forma lenta e díficil da sua mãe. Era uma figura efémera, quase sombra nos jogos de luz, e dela pouco mais sabia do que contavam as fotografias, ainda por cima desapropriadas das cores e amarelecidas pelo tempo, e do que diziam um ou outro familiar disperso. A única coisa que sabia ao certo da mãe era que ela acalentava o sonho de ser bailarina. Nunca ouvira o pai falar dela. Supunha que tinham alguma relação com isso os longos suspiros que o seu pai dava até há onze anos atrás, quando ainda era vivo, diante de uma garrafa de vinho tinto. E hoje, agora, sem que nada o fizesse prever, Maria lembra-se da sua mãe. No escuro da sua mente aparece a mãe de Maria, a mesma das fotografias embora parecesse mais velha, desfocada e iluminada por uma luz esmaecida que escorria da janela daquela mesma cozinha. Sentada ali mesmo, no mesmo banco de areia. Os seus olhos estavam imersos num imenso nada, presos. Eram secos, impossível serem mais secos, queriam chorar e não podiam. A cozinha estava afundada em brumas, a mão apoiava pensativamente o seu queixo, todo o seu corpo estava dobrado para a frente. O lábio inferior tremia-lhe.

Do silêncio vazio da casa, em que destoava sinistramente o ruído do frigorífico a trabalhar, brotou o som grotesco da porta de madeira a abrir-se, das passadas largas do pai de Maria caminhando em direcção à cozinha. Cambaleava um pouco. O álcool turvava-lhe a vista.
– O jantar não está pronto?
Sente-se o silêncio sepulcral.
– Que merda é esta?
Segredos subitamente sós saem do desassossegado sossego.


O som das costas das mãos do pai de Maria caindo pesadamente sobre a face da sua mãe eram brutais. A cabeça da mãe de Maria tombou com a violência, primeiro para um lado, depois para o outro, e repetiu-se o acto. Depois ficou tombada, no silêncio renovado de significado renovado. Ela deixou-se ficar ali, esquecida.

O marido saiu, ia certamente comer à taberna. A mãe de Maria abandonou a cozinha, deu um beijo na testa da filha pequena que assistira a tudo, sentada no último degrau da escada de madeira que ligava os dois pisos, e saiu, de vez, daquela casa. Era uma noite fria de Inverno, mas mesmo que fosse Verão aquela seria sempre uma noite fria de Inverno.

Maria ergueu a cabeça, de súbito, alerta. Saiu da cozinha, súbiu a escada de madeira, entrou no quarto da filha. Os passos ressoam por toda a casa, os sons multiplicam-se em ecos nas paredes brancas e frias. Maria pega na filha ao colo e leva-a; saiu daquela casa para nunca mais voltar. Um dia contar-lhe-á as histórias da avó bailarina.

O bolo ficou queimado, esquecido no forno.


quinta-feira, julho 14

Noite de Inverno

Senti-me subitamente sozinho:
não que até então eu estivesse acompanhado e de súbito fosse deixado só;
não que eu só então tivesse descoberto o significado de estar sozinho;
não que até aí pensasse na solidão mais como na companhia do que como a amargura de uma série de nãos numa noite de Inverno

(lá fora neva);

não que subitamente senti-se, e nesse instante de principiar a sentir, me senti-se sozinho;
não que a manta de ilusões cristalizadas, de formas poliédricas e regulares e espelhadas se tivesse repentinamente quebrado em mil estilhaços;
não que os sons se tenham esgotado abruptamente;
não que me tenha apercebido, pela primeira vez, de que não interessa o que faço se ninguém me olha;
não que me tenha apercebido que ninguém me olha.

fora corre uma aragem fria. Ponho a minha cabeça de fora, recebo nos poros da pele a sensação gélida e cortante do frio extremo. Abro os olhos. Lá fora existem muitas pessoas, as pensativas sentadas em bancos de madeira caiados de verde, as que injuriam o automobilista que as ultrapassou, as que esperam pacientemente, talvez alguém, talvez a alvorada, as que conversam numa cumplicidade de olhares e toques, sem palavras
(como se fossem inúteis ou fúteis, ou não existissem),
as que chegam aos magotes e as que saem aos magotes, de e para algum sítio que se perde nas fronteiras negras do céu negro, as que inspiram cada pedaço de ar como se fosse o primeiro. Apercebo-me súbitamente da vida lá fora,
(não faço parte dela).
Sinto-me enclausurado. As paredes aproximam-se e sufocam-me. Redúzido a uma partícula de pó imaterial, puramente conceptual, viajo na crina das palavras ditas pelos lábios de todo o mundo, e das não ditas pelos lábios que em todo o mundo se tocam e se fundem num acto de amor.
(fundem-se os corpos e as ideias,
cai o pano
sobre a noite de inverno do outro lado da janela)

quarta-feira, julho 6

Um dia arrancou;

Finalmente, deixava as estradas entupidas
(– Deve ter havido alguma acidente)
e entrava no parque de estacionamento do centro comercial. Por cima uma vara branca e rubra marcava a altura máxima dos veículos destinados a entrar. Estendeu o braço para a maquineta amarela. Carregou num botão verde, em troca a máquina emitiu um pequeno cartão verde claro. Recebeu-o. A cancela abriu, e ele entrou. Mais uns quatro ou cinco carros, em que ia reparando à vez, deambulavam pelo parque em busca de um lugar – mas nada, o estacionamento estava lotado, as caixas marcadas com tinta branca no chão estavam todas ocupadas. Virou à direita. Nada. Virou à esquerda. Depois novamente à esquerda. Nada. Pelo canto do olho viu, em frente, à direita um lugar vazio. Tentou virar, mas foi obrigado a parar. Um peão estava a atravessar a passadeira. Quando este chegou ao seu destino já a merecida posição que o ocupante do veículo vira tinha sido ocupada por um automóvel verde. Num instinto que era uma mistura de fúria cega e de desilusão impulsiva, saiu do carro em passo rápido, decidido, irado para pagar a meia hora que passara às voltas no parque, e depois deixou rapidamente o lugar, lançando-se numa corrida solitária e desenfreada por caminhos casuais e desconhecidos. Sentiu o espírito libertar-se abruptamente e iluminar-se todo, como se antes daquele momento estivesse estado encarcerado naqueles labirintos urbanos.


Ligou o rádio, mas para ouvir música. Se dava notícias, informações de trânsito ou spots publicitários ou se simplesmente o locutor se excedia na sua narração, o condutor rapidamente esticava o seu indicador para avançar para a estação seguinte. A música é uma boa companheira de viagem, pensou. Não quis entrar na autoestrada. Meteu-se antes pelas estradas nacionais que nunca tinha percorrido. Abriu completamente as janelas, mas o ar lá fora estava mole, pesado, parado, quente, não arrefecia em nada o interior abafado do veículo.
Pelo vidro do pára-brisas sucediam-se paisagens: montes altos e de formas singulares que se sucediam e se apagavam no céu, planícies repletas de oliveiras, rios correndo debaixo de antigas pontes de pedra, mantos verdes onde crescem plantas das mais variadas cores e formas, ao longe pequenas aldeias de casas caiadas de branco e telhados vermelhos. Já divagava por esses caminhos de asfalto há quase duas horas. O ponteiro da gasolina continuava estranhamente anunciando um depósito meio-cheio, mas o condutor sentia o carro leve. Decidiu-se a parar na bomba de gasolina mais próxima, pelo sim, pelo não. Mas é precisamente quando toma esta decisão que a viatura se recusa a andar mais e vai abaixo. Duas ou três tentativas bastaram para frustrar o homem e convencê-lo que, dentro do automóvel, nada podia fazer. Limitou-se a empurrá-lo, usando de todas as suas forças, para a berma da estrada deserta, por forma a não perturbar os demais que pudessem vir a passar por ali. Depois seguiu a pé os sinais brancos rectangulares, com letras pretas, que indicavam povoações na proximidade, até encontrar uma vila, uma aldeia, uma casa que fosse.

Calculava ter andado aí uns dois quilómetros até encontrar, finalmente, sinais de vida humana. Aproximou-se de uma casa ao acaso, tocou a campainha.
– Quem é?,
perguntou alguém, de lá de dentro, e depois, mais próxima da entrada, repetiu
– Quem é?,
ao mesmo tempo que abria a porta. É mesmo caso para perguntar Quem é, pensou a senhora, enquanto mantinha a preocupação de deixar a mão esquerda na maçaneta, nunca o vi por aqui, donde será que ele vem? Deve ter vindo de Lisboa certamente, concluiu.

O homem esse, sentiu o seu corpo aquecer e a face ruborescer, enquanto tentava recordar-se de quem era e porque razão estava ali.
– Desculpe mas o meu carro ficou sem gasolina sabe-me dizer qual é a bomba mais próxima?,
disse-o sem vírgulas, sem pausas, sem espinhas, reparando no olhar suspeito com que a mulher o focava. Este ar um pouco atrapalhado do homem traquilizou a mulher, que retirou finalmente a céptica mão da maçaneta.
– Agora só na cidade, e isso ‘inda fica a uns dez quilómetros daqui, não vai chegar até lá empurrando o carro. Porque não chama o reboque?
– Tem razão, realmente... Diga-me então que sítio é este... E já agora, há por aí uma cabine telefónica?

Quando o homem saiu dali devia estar a sentir-se menos confuso, pelo menos era isso que perspectivara, mas lentamente, ao sair do efeito da decisão momentânea e repentina que tomara horas antes, e ao não encontrar uma explicação racional para o facto de estar ali, achou-se mais desorientado do que em qualquer outra altura jamais se achara. Num tom de voz baixo lamentou o facto de, quando reconhecemos o que os nossos olhos veêm como realidade, quando estamos no estado que poderíamos denominar normal, termos sempre que arranjar uma explicação racional para as nossas atitudes. É quase como se a presença das outras pessoas nos obrigasse a reflectir sobre o que fazemos, e ainda por cima nos limitasse a forma de o praticar. Isto porque não podemos alegar seguir os nossos instintos, o que nos parece extremamente lógico nestas situações: a explicação tem que ser racional sobre a ópticas dos outros.