A minha avó era uma bailarina
Maria pousa a mão sobre o mármore frio da bancada da cozinha. O ar está cheio de aromas quentes e doces. No forno o bolo de laranja cresce, torna-se esponjoso e apetitoso. Maria retira-o usando uma apenas a mão que protege com a pega. Estamos no Outono – pela janela observam-se as cores, quentes e nostálgicas como o olhar de um velho preso ao passado. Maria senta-se num banco de madeira e descansa a cabeça contra a parede, e deixa-se ficar naquele estado de letargia que está entre o dormir e o permanecer acordado. A engrenagem da memória é uma coisa complicada: tanto pode estar bem oleada e engatar facilmente como principiar morosamente a rebuscar episódios mais ou menos distantes, que até podem parecer pertencer a outras vidas. Com as pálpebras cerradas, Maria começa a lembrar-se, de forma lenta e díficil da sua mãe. Era uma figura efémera, quase sombra nos jogos de luz, e dela pouco mais sabia do que contavam as fotografias, ainda por cima desapropriadas das cores e amarelecidas pelo tempo, e do que diziam um ou outro familiar disperso. A única coisa que sabia ao certo da mãe era que ela acalentava o sonho de ser bailarina. Nunca ouvira o pai falar dela. Supunha que tinham alguma relação com isso os longos suspiros que o seu pai dava até há onze anos atrás, quando ainda era vivo, diante de uma garrafa de vinho tinto. E hoje, agora, sem que nada o fizesse prever, Maria lembra-se da sua mãe. No escuro da sua mente aparece a mãe de Maria, a mesma das fotografias embora parecesse mais velha, desfocada e iluminada por uma luz esmaecida que escorria da janela daquela mesma cozinha. Sentada ali mesmo, no mesmo banco de areia. Os seus olhos estavam imersos num imenso nada, presos. Eram secos, impossível serem mais secos, queriam chorar e não podiam. A cozinha estava afundada em brumas, a mão apoiava pensativamente o seu queixo, todo o seu corpo estava dobrado para a frente. O lábio inferior tremia-lhe.
Do silêncio vazio da casa, em que destoava sinistramente o ruído do frigorífico a trabalhar, brotou o som grotesco da porta de madeira a abrir-se, das passadas largas do pai de Maria caminhando em direcção à cozinha. Cambaleava um pouco. O álcool turvava-lhe a vista.
– O jantar não está pronto?
Sente-se o silêncio sepulcral.
– Que merda é esta?
Segredos subitamente sós saem do desassossegado sossego.
O som das costas das mãos do pai de Maria caindo pesadamente sobre a face da sua mãe eram brutais. A cabeça da mãe de Maria tombou com a violência, primeiro para um lado, depois para o outro, e repetiu-se o acto. Depois ficou tombada, no silêncio renovado de significado renovado. Ela deixou-se ficar ali, esquecida.
O marido saiu, ia certamente comer à taberna. A mãe de Maria abandonou a cozinha, deu um beijo na testa da filha pequena que assistira a tudo, sentada no último degrau da escada de madeira que ligava os dois pisos, e saiu, de vez, daquela casa. Era uma noite fria de Inverno, mas mesmo que fosse Verão aquela seria sempre uma noite fria de Inverno.
Maria ergueu a cabeça, de súbito, alerta. Saiu da cozinha, súbiu a escada de madeira, entrou no quarto da filha. Os passos ressoam por toda a casa, os sons multiplicam-se em ecos nas paredes brancas e frias. Maria pega na filha ao colo e leva-a; saiu daquela casa para nunca mais voltar. Um dia contar-lhe-á as histórias da avó bailarina.
O bolo ficou queimado, esquecido no forno.
Do silêncio vazio da casa, em que destoava sinistramente o ruído do frigorífico a trabalhar, brotou o som grotesco da porta de madeira a abrir-se, das passadas largas do pai de Maria caminhando em direcção à cozinha. Cambaleava um pouco. O álcool turvava-lhe a vista.
– O jantar não está pronto?
Sente-se o silêncio sepulcral.
– Que merda é esta?
Segredos subitamente sós saem do desassossegado sossego.
O som das costas das mãos do pai de Maria caindo pesadamente sobre a face da sua mãe eram brutais. A cabeça da mãe de Maria tombou com a violência, primeiro para um lado, depois para o outro, e repetiu-se o acto. Depois ficou tombada, no silêncio renovado de significado renovado. Ela deixou-se ficar ali, esquecida.
O marido saiu, ia certamente comer à taberna. A mãe de Maria abandonou a cozinha, deu um beijo na testa da filha pequena que assistira a tudo, sentada no último degrau da escada de madeira que ligava os dois pisos, e saiu, de vez, daquela casa. Era uma noite fria de Inverno, mas mesmo que fosse Verão aquela seria sempre uma noite fria de Inverno.
Maria ergueu a cabeça, de súbito, alerta. Saiu da cozinha, súbiu a escada de madeira, entrou no quarto da filha. Os passos ressoam por toda a casa, os sons multiplicam-se em ecos nas paredes brancas e frias. Maria pega na filha ao colo e leva-a; saiu daquela casa para nunca mais voltar. Um dia contar-lhe-á as histórias da avó bailarina.
O bolo ficou queimado, esquecido no forno.