Um dia acordas, lá ao fundo o sol afoga-se nas águas quentes do mediterrâneo. Não percebes, de imediato, porque acordas quando a noite já quase chegou. Ergues o teu corpo, estendes o braço, e tocas a água, tão límpida. A maré está a súbir e alcançou-te. Não te lembras quem és, apenas do que não és. Com a mão direita encontras uma concha. Tacteia-la e aprendes a conhecer as estrias que a percorrem. Inspiras fundo, e enches os teus pulmões de maresia. Fechas os olhos. As tuas costas tombam para trás. Está calor, muito calor. Lentamente, os teus membros cedem ao torpor. O toque fresco e súbtil do mar vem acariciar-te os pés. Não sabes exactamente onde estás, tens apenas a leve sensação de que isso não é importante. Apetece-te deixares-te assim, quieto nas quietudes da praia. Uma ou duas gaivotas cortam o céu. Ouves o burburinho do mar que vem e vai, e parece-te distante. Alguns grupos de pessoas conversam. A pouco e pouco o céu incendeia-se e escurece, e as pessoas vão deixando a praia. Tu permaneces. A água já te abraça os joelhos. Sentes-te leve como a pena de uma ave caindo suavemente sobre a areia. Sentes o planeta rodar. Sentes, numa brisa mais forte, a textura da areia. Sentes tudo o que te rodeia levitar. Adormeces, mas não reparas. A linha que separa o sonho da realidade aparece-te tão ténue que não podes deixar de pensar que talvez não exista.
Por entre a camada esponjosa de nuvens, o sol espreguiça os seus longos braços luminosos por sobre o mar e ilumina: o mar envolve a areia num abraço carnal, seguro, mas o sol e a lua andam fugidos ou desencontrados, buscam-se no céu, mas na manhã em que um aparece a outra foge, e na noite em que um se vai a outra regressa. Na areia junto ao mar moldam-se as formas dos pés de um homem e dos pés de uma mulher; sentaram-se ali, naquele monte de areia; e agora, a maré subia e inundava as palavras dessa história por contar. Havia sete noites que a poetisa estava em casa. O seu rosto era pálido, de um branco quase doentio, uma tonalidade frágil, como uma boneca de porcelana. Os seus olhos castanhos fixavam o tecto com o olhar profundo de quem sente vida nas coisas mortas. Havia sete noites que não escrevia. Nessa noite não escrevera ainda. Não se sentia bem, nem sequer se sentia melhor do que nos dias anteriores, e porém sentiu-se de tal maneira atraída por esse mar que levitava lá ao fundo que não resistira ao chamamento: saiu de casa nessa noite. A noite estava fria; as ruas desertas. Aquela era uma pequena vila piscatória que se enchia de turistas no Verão e de silêncio no Inverno. A poetisa chegara à praia; descalçou os chinelos que trazia, embrulhou-se melhor no casaco. Andou à beira-mar. Sentou-se na areia. Sorriu. Tinha uma certeza - ou melhor um sentimento subjectivo e sem sustentação, mas na altura não lhe parecia haver qualquer diferença - de que alguém iria ali estar ainda naquela noite. Depois olhou. Talvez... e deixou-se enlear num desse agradáveis mantos de ilusões, como quem lê um romance ou vê uma pintura. Havia tantas palavras por dizer, tantos versos por escrever! Com um ramo de madeira, começa por escrevinhar um poema. O último verso deixa-o. Por escrever.
Os raios de sol que, esparsos, furam já as nuvens tornam a crista de cada onda numa lâmina esbranquiçada e refulgente. A praia está vazia. E na areia restam as marcas de uma história a dois: as pegadas de um par de pés grandes e ligeiramente encurvados para dentro e um outro de pés súbtis, femininos, pequenos as pegadas cravadas na areia húmida, são lentamente apagadas pela maré crescente; e além aquele monte de areia que ainda marcava o local em que eles se sentaram, esvai-se numa onda mais afoita e extensa. Há sete noites, um poeta esperançado, estava sentado à sua secretária: a folha de papel à sua frente permanecia vazia. Pela janela via os edifícios baixos e brancos alongarem-se até à praia. Uma ou outra vivenda chegava mesmo a invadir a areia, mas essas não se viam da janela. Depois via o mar agigantado: como se se tivesse lançado num salto de conquista e depois tivesse estacado, indeciso. Esperava o poeta que desse mar saltassem versos inspirados; que esse mar possuísse em si todas as palavras necessárias do mundo na ordem perfeita; que esse mar tivesse em si o sal e os peixes nadando e os versos sobejando. E há sete noites que o poeta se mantinha acordado - a folha permanecia vazia. E eis que, nessa noite, um poeta desiludido deixa o apartamento; a noite está fria. Corre no ar uma brisa cortante. Decidido, o poeta aconchega-se mais no seu blusão, e avança na direcção da praia. Descalça os sapatos, e caminha com os pés nús pela areia molhada, e senta-se num pequeno monte de areia, provavelmente obra de uma qualquer criança no fim da tarde. Olha o mar. Despe o blusão e entra na água do mar, com a t-shirt e as calças. Sai ensopado; os versos pingam-lhe dos fios de cabelo, escorrem-lhe pelas costas. Olha o céu, pejado de estrelas cintilantes. E depois olha a areia, e vê (é um poema esculpido com um pequeno pedaço de madeira; mas! falta-lhe um verso!; aproxima-se; pega no pau) e escreve. Em breve nascerá o sol, e iluminará todas as coisas de uma forma diferente. O poeta está certo disso; levanta-se e sai, um poeta esperançado.
As palavras são frágeis. Um dia acordamos, olhamos o tecto, olhamos a janela, e todas as boas palavras que sabíamos perderam o seu significado, foram gastas pelo uso, quebradas pela marcha de uma civilização toda ela eregida à custa de palavras gastas. As palavras são também fúteis sem as pessoas. E os olhares, os sons, o silêncio até, o ar, o que diz e o que ouve ou lê ou sente, constroem de novo palavras com significado