sábado, outubro 30

Liberdade!

Dou por mim, por vezes a pensar como se não fosse livre quanto baste. Agrada-me pensar que neste presente que corre e neste país em que vivo eu sou, realmente, livre o suficiente. Porque a liberdade é uma coisa pessoal e unívoca - cada um tem uma e só uma, que é sua e só sua. Claro, estou preso ao chão, preso aos olhares, preso aos desamores, preso aos ódios, preso às invejas, mas ainda assim, sinto-me como se fosse afinal, realmente livre. Quase me sei livre, sei totalmente que não o sou.

Mas quando, quase que pela ciência do pensamento, me sinto livre, é como se o fosse de facto. Assim que cessa este exercício do pensamento, dou-me finalmente como livre para pensar na liberdade dos outros. Ela não me pertence nem tão pouco me diz respeito, mas como pessoa suficientemente livre que me penso, tenho a liberdade de pensar a liberdade dos outros. Ela não me diz respeito porque não beneficio dela, e porque iniciando uma saga solitária para a aumentar acabarei por me aperceber que, sozinho, pouco a posso mudar.

Mas se eu tenho a liberdade de me pensar livre, porque não hão-de os outros de ter tanta liberdade como eu de se julgarem livres? Não é uma questão de nos sujeitarmos às ordens ou ovirmos as ordens dos "outros" que extingue a nossa liberdade. É o facto de fazermos das ordens e opiniões dos "outros" o padrão de comportamento da nossa vida que nos estrangula os movimentos. Deixarmo-nos obcecar, hipnotizar, deixar o nosso comportamento ser escravizado pelas palavras alheias, isso sim, é o que nos limita as opções. Sem escolhas é tudo sempre mais simples. Talvez seja por isso que as pessoas se deixam dominar, invadir por palavras.

terça-feira, outubro 26

Momentos

momentos em que me apetece decorar as cores do céu, ou os cheiros da cozinha, ou as luzes da cidade. Há momentos em que me apetece deitar na areia da praia, na relva do campo, na cama, há alturas em que me apetece deitar e observar, ouvir, cheirar. Há momentos em que os meus sentidos despertam, como se súbitamente assaltados pela lembrança de vida. E o significado das coisas é diferente nesses momentos. A sua importância quase nenhuma é levada a tocar o extremo oposto. E é precisamente a não necessidade que temos de sentir o mundo que torna esses momentos preciosos. O não necessário é, necessariamente, precioso.

Ouvir o silêncio nem sempre é compensador. Mas é-o nesses momentos. Ouvir o silêncio nunca é necessário. É um prazer supérfluo, como todos os prazeres e é isso que o torna precioso. Outros silêncios são tristes, pesados, deprimidos, mas não nesses momentos. Porque, em boa verdade, o silêncio é nosso, somos nós que o lemos.

domingo, outubro 24

Lost in the City

I'm lost in the city,
not feeling anything,
as if I'm not a person
but a thing.

I'm lost in the city
away from home,
away from me,
just lost in the city, alone.

I've forgotten my name,
I've forgotten me,
I've closed my eyes,
there's nothing I want to see.

I'm lost in the city,
waiting to be found,
but the silence is scary
and I don't listen to my heart's sound.

segunda-feira, outubro 18

Não há tempo

Às vezes sentimo-nos perdidos nesta cidade, é uma cidade tão grande mas com tão pouco espaço, parece, porque às vezes sentimo-nos perdidos nela, e não é perdidos de não saber o caminho mas de não ver o caminho, porque estamos perdidos na essência da cidade, na sua crescente entropia, porque estamos perdidos de loucura, estamos perdidos de nervos, porque queremos parar e não podemos, porque entramos no metro, no autocarro, no carro, trabalhamos, estudamos, trabalhamos e depois metemo-nos no metro, no autocarro, no carro, chegamos a casa e trabalhamos, estudamos, e estamos perdidos, estamos perdidos, perdemos a noção de tempo, perdemos a noção de espaço, perdemo-nos na essência da cidade, e não apreciamos a textura do papel, nem a beleza do conteúdo, não apreciamos a beleza das coisas, porque não há tempo, nem sequer a sua importância, porque não há tempo, apreendemos e seguimos em frente, porque para nada mais há tempo e estamos perdidos na essência da cidade, nas suas pressas, nos seus nervos, no seu stress, porque estamos perdidos dentro de nós próprios e só vemos pontos finais no fim do texto, porque não há tempo e quando vemos esses pontos finais nem temos tempo de derramar uma lágrima por tudo o que não fizemos por falta de tempo.

sexta-feira, outubro 15

Sentimentos: O Céu (contemplação)

Os céus de fim de tarde surpreendem-me sempre. O de hoje vinha dourado, rosa, azul. Vinha recheado de uma beleza como a que os homens imaginaram para os anjos. Encheu-me de memórias de coisas que eu nunca vivi.

Os meus sentimentos trazem sempre uma banda sonora a acompanhar, como nos filmes. E, como nos filmes, cria-se magia, e o ímpossível torna-se possível, e, portanto, tenho que conter o meu ímpeto de saltar e voar, e planar, e abrir os braços, abrir as asas, tornar-me num pássaro, branco, puro.

Sob tal céu a cidade, mesmo com os seus prédios pintados com cores desarmoniosas, mesmo com as suas estradas esburacadas, mesmo com as suas ruas sujas, mesmo com todos os seus defeitos a cidade ganha uma beleza ímpar, que escapa à dimensão do que o homem pode criar. Debaixo deste céu até o mais repulsivo dos corações se torna puro, até o ódio se torna amor. Debaixo deste céu até se torna rosa qualquer erva daninha aspirante a flor.

Pensamentos: Antes de Tudo

De vez em quando sinto-me perdido num acaso, num erro. Porque antes do tudo imagino o nada, o infinitamente grande e impossivelmente pequeno nada de que surgiu a primeira de todas as coisas criadas. E porque do nada brotar alguma coisa, parece-me, só pode ser um erro do destino, do tempo (que, no nada, ainda não existe), pois nada existe no nada.

E, mesmo que Deus exista - o perfeito criador para tudo o que precisava de ser criado -, não posso evitar que, por vezes, me questione: e antes d'Ele? Parece-me impossível o tempo no Seu universo ou qualquer que seja o universo do que chegou antes da criação, parece-me impossível o tempo porque com ele há sempre um antes e um depois e um agora.


Parece-me que o tempo abusa de nós e do nosso bom senso. Parece-me que, após milhões e milhões de anos, pensarmos em horas, minutos, segundos, não faz sentido, é um uso excessivo da nossa paciência. E depois, o tempo ainda me leva a perguntar "e antes disso?" e assim a questionar tudo o que sei e aprendi e sou e vejo e toco.

quinta-feira, outubro 14

Sentimentos: Dias de Chuva

chuvas e chuvas.

chuvas em que chove chuva. Há chuvas imensamente tristes porque supérfluas. São apenas as nuvens deixando cair o seu ar cinzento. São chuvas que servem somente para que do céu tombe água. São chuvas frias e despojadas de sentimentos.

Mas por vezes o céu precisa de chorar todas as coisas que nunca ninguém se lembrou de chorar. Sente-se no ar a melancolia do céu, sente-se a sua solidão, querendo falar ao sol e à lua e ao mundo e não podendo. E sente-se a sua frustração por dar importância a coisas que mais ninguém dá, por querer chorar coisas cuja existência já todos esqueceram há muito tempo. Por vezes o céu deixa cair sobre nós palavras salgadas e desencontradas, palavras soltas, todas as palavras que nunca pode dizer. Por vezes chove poesia do céu.

E se houver arco-íris, foi porque o sol o fez rir.

quarta-feira, outubro 13

Pensamentos: A Vida Sem Morte

"Portanto eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhança da morte."
Vergílio Ferreira in Aparição

Quanto mais insistentemente busco uma razão para o ser, mais me parece que, a existir alguma, só existe pela existência da morte. Não vejo na vida outro sentido que não a necessidade de cumprir a nossa obra num prazo estabelecido... Um prazo cuja data não podemos prever e uma obra que não conhecemos.

Não vejo sentido na face enrugada de um velho que um dia foi novo e que nunca se levantou do seu assento, certo que o dia seguinte virá, e nascerá e morrerá como todos os outros dias, e que depois dele nascerá outro e que também esse morrerá. Só ele sabe que não vai morrer. Vai continuar ali, na sua cadeira, olhando com o mesmo ar cansado com que nasceu, o céu e o horizonte infinitos que, sabe, tem muito tempo para descobrir. Não vejo sentido no seu corpo sem vida por ausência de morte. Não vejo sentido na sua inércia.

E assim me parece que sendo a morte improvável a vida sê-lo-á também.

terça-feira, outubro 12

Pensamentos: Dejá Vu

Parado, encostado a uma parede, olhando o vazio, participo activamente num momento único mas que em nada me parece exclusivo daquele tempo. Encontro, escondida no meu cérebro, outra imagem sonhada em sonos antigos que é em tudo igual ao meu momento presente. Respiro o mesmo ar, oiço os mesmos sons e cheiro os mesmos odores.

É um momento ínfinitamente pequeno, mas de tal forma paranormal que se distingue pela sua natureza paradoxal. Serei eu apenas o reflexo sonhado daquilo que sonho quando adormeço?

Saboreio a incompreensão como um bom entendedor da matéria, e por minutos desejo que ninguém tenha para esse momento uma explicação esclarecedoramente científica - de tão mágico, de tão irreal, não merece explicação.

Pensamentos: Perguntas e Respostas

À velocidade a que crescemos e a que pensamos, a que perguntamos e respondemos, o que acontecerá se um dia o homem, se esgote de questões, porque as vê a todas respondidas, bem argumentadas e de tal forma provadas que nem se poderião por em causa?

Como se sentirá então a humanidade, sem nada para perguntar, nada que exercitasse aquilo que afinal os tornava diferentes e por isso mesmo, tornando-se animais, seres de tal forma ignorantes que nem sabem o que perguntar?

Penso num homem habitando esse futuro apocalíptico, olhando o céu com ar de enfado, sabendo da verdade sobre Deus como sobre todas as coisas, sabendo da verdade de cada átomo, de cada molécula, e privado do prazer da descoberta própria, do raciocínio único do seu ser... Penso num homem assim e sorrio perante este mundo ignorante em que vivo, fértil em perguntas e sedento das respostas.


segunda-feira, outubro 11

Pensamentos:

Às vezes caio neste vício de pensar.

E quando estou a caminhar numa rua, sozinho, tenho tendência a pensar sobre como pensarão as pessoas que, como eu, caminham sozinhas. E se elas estiverem a pensar sobre como eu penso quando caminho sozinho? Estarei realmente a caminhar sozinho, ou será que não?

Não seria mais fácil, chegar-me ao pé das pessoas que são afinal outras e perguntar directamente, sem rodeios:

- Em que é que estás a pensar?

E no fim deixo-me a caminhar sozinho, encolhido na pequenez do meu eu.


Tarde Demais

Ontem a noite aparecia em pano de fundo (as estrelas, a lua, uma garrafa de cerveja no chão, a estrada ainda húmida). Eu estava na varanda, a saborear a brisa fresca que corria e a cidade passeava a meus pés, vivia, e eu, tenho de confessar, tinha um certo gosto em ver a cidade viver.
Até aqui, nada podia ser mais banal: eu, depois do jantar, esperando na varanda ser bafejado pelo perfume romântico de uma cidade nocturna. Mas, ontem, ontem deu-se um caso curioso. Reparei que não estava só. Reparei, e senti um equílibrio estranho em todo o mundo, em todas as vidas, em todas as mortes, em todas as palavras sem sentido, em todos os paradoxos insolúveis que são as pessoas que (reparei ontem) vivem ali em baixo, na cidade, e a fazem viver.
Subitamente, aquela noite e aquela varanda pareceram-me insignificantes; subitamente, senti o desejo egocêntrico de ser também mais um, e não apenas eu. Fiquei abandonado à cidade e nela confiei para me guiar. Porque talvez, afinal, em todas as luzes que se acendem, em todas as almas que vivem, haja ainda uma em que restem as palavras que quase viram o seu sentido exterminado pela vontade dos homens que ainda não repararam que não estão sós.
Estava tão enleado com os meus pensamentos que nem senti o céu rebentar por cima de mim, nem senti a roupa molhada colar-se ao corpo, nem senti a chuva acelerar, nem senti o frio enregelar-me os ossos, nem senti a fome, nem senti a sede, nem senti o esquecimento. Nem senti sequer o meu corpo cair para trás e a minha cabeça bater na pedra branca da calçada, e o sangue escorrer, e a minha mente enlouquecer. E, finalmente, o sol raiou.
A manhã veio aquecer-me o corpo, e notei que estava dorido, e cansado, e morto. E que a minha cara estava molhada não de chuva mas de lágrimas. Tentei levantar-me, mas a dor levou a melhor. Tentei olhar, mas perdi contra as minhas pesadas pálpebras. Os meus gritos de socorro sufocavam na minha garganta arranhada. Derrotado, deixei o sol da manhã lavar de mim a minha vida e a minha esperança.
– Não estás só...
Vi tocarem o meu corpo, como se eu me fosse estranho, uma mão e um olhar desconhecidos. E ouvi palavras que já não ouvia há tanto tempo, que já nem sabia como soavam. E aquele momento era tudo – tudo! – o que eu queria sentir.
Tarde demais.

Palavras Urbanas

Gosto de palavras. Gosto de sonhar as luzes da cidade negra de noite, e de contar as luzes sonhadas. Gosto de escrever palavras ao acaso e com elas construir cidades e noites e dias só meus. Gosto de escrever "manhãs frias de Inverno" e "noites quentes de Verão" e "tardes de Primavera" ou "fins de tarde de Outono". Gosto de sons, de palavras, de imagens, de sentidos perdidos, sem tempo nem espaço próprios, à deriva no nada. Gosto de repetir as palavras de que gosto.
E gosto de escrever palavras urbanas.